Publicado na vigésima-quinta edição, de abril de 2011, da Revista Espírito Livre.

Foi recentemente lançada a versão 4.5 do Trisquel GNU/Linux, uma distribuição de Software 100% Livre, instalada nos cartões USB dos membros da FSF e uma das poucas recomendadas pelo projeto GNU. A Revista Espírito Livre tem o prazer e a honra de entrevistar o líder do projeto, Rubén Rodríguez Pérez.

  • Por que e para quem é mantida a distribuição Trisquel GNU/Linux?

Trisquel é desenvolvido para todo aquele que queira usar seu computador em liberdade. Agora que GNU/Linux começa a ser mais conhecido isso soa mais simples do que é: todos sabemos que quando o software privativo começou a ser habitual o movimento pelo Software Livre nasceu para oferecer uma alternativa ética, começou-se o projeto GNU, em seguida se publicou Linux e ambos se uniram para produzir essas "distros" que os amantes da liberdade usamos todos os dias. O que muitos desses usuários não sabem é que quase todas essas distribuiçõs contêm software privativo. Nosso trabalho é fazer uma distribuição realmente livre usando como base a mais popular atualmente: Ubuntu.

  • O visual do Trisquel é fantástico, mais bonito e agradável que o das distribuições em que se baseou! Qual a importância do aspecto visual? Dá muito trabalho?

Ora, obrigados! Tentamos usar sempre um enfoque positivo na "evangelização", não queremos que Trisquel seja simplesmente "Ubuntu sem as peças privativas", senão melhorá-lo em todos os aspectos que possamos.

O primeiro passo depois de torná-lo livre é melhorar a experiência do usuário, e o aspecto gráfico é um dos pontos mais importantes para isso. Investimos muito esforço em design, porque sabemos que a primeira impressão é vital num mundo com tanta concorrência.

Aplicar o design é simples, o complicado é criar uma imagem que seja ao mesmo tempo atraente, consistente e fácil de usar. Além do mais, é um trabalho que nunca termina, pois cada versão nova tem de ter um aspecto atualizado e que chame a atenção, sem perder usabilidade.

  • Trisquel já foi baseado em Debian. Por que mudou sua base para Ubuntu?

O projeto nasceu como uma derivada de Debian há 6 anos, principalmente porque era fácil de adaptar e modificar. Em 2008 mudamos para Ubuntu porque oferecia melhorias técnicas com um bom suporte Live com um instalador muito fácil. Até o momento usávamos um instalador bastante medíocre feito "sob medida", e o sistema Live não era muito estável.

Dois anos depois da mudança creio que a decisão foi acertada, mas principalmente por motivos éticos. É importante que exista uma versão livre da distribuição mais utilizada, sobretudo vendo que ela tem cada dia menos respeito por seus usuários e desenvolvedores. gNewSense -anteriormente baseada em Ubuntu- deu o salto na direção oposta, baseando-se agora em Debian -para ter suporte a mais arquiteturas como MIPS- assim que, de certa forma, dividimos o trabalho.

  • Quais as principais novidades da versão 4.5?

Nesta revisão o trabalho se concentrou sobretudo nas feerramentas de desenvolvimento e manutenção que sustentam o projeto: renovaram-se os servidores e seu software, reescreveu-se grande parte do sistema de compilação e gestão interna dos repositórios e automatizaram-se muitos processos. O resultado é que, ainda que tentamos que não houvesse muitas diferenças de usabilidade em relação à edição anterior, o sistema está muito mais polido graças a que é mais fácil aplicar modificações aos pacotes.

Entre as principais mudanças para os usuários está o suporte experimental a aceleração 3D em cartões NVIDIA, melhoras no navegador -reprodução de vídeos sem flash, mais privacidade e velocidade-, novo sistema de inicialização e instalador e muitos pequenos detalhes de acabamento.

  • A versão 4.0 foi LTS. O que isso significa?

LTS é um termo que vem do Ubuntu e significa "Long Term Support" ou suporte de longo prazo, e implica que Trisquel 4.0 terá suporte durante três anos e atualizações de segurança durante mais dois. É o outro grande motivo que nos induziu a mudar de base, pois significa que, diferente do Debian, Ubuntu publica suas versões com uma regularidade fixa, com o que podemos planejar melhor nosso trabalho.

As versões LTS são as indicadas para instalações em empresas e instituições como colégios, onde o importante é a estabilidade. Seguindo o Ubuntu, Trisquel publica uma versão aproximadamente a cada seis meses, sendo as não LTS mais recomendáveis para uso pessoal, se quiser ter as últimas versões de cada programa.

Uma crítica que se deve fazer ao Ubuntu é que esse prazo fixo obriga a publicar as versões quando manda o calendário, ao invés de -como faz Debian- quando estão prontas. Nós demoramos vários meses para construir Trisquel baseado a cada novo Ubuntu, com o que há tempo para polir as falhas e como resultado Trisquel é mais estável.

  • Como fazem para transformar uma distribuição como Ubuntu, que inclui e recomenda Software não-Livre, numa distribuição 100% Livre?

O primeiro passo é eliminar do repositório todos os pacotes privativos. A lista é maior do que caberia esperar, e graças à política da Canonical a esse respeito, cresce a cada dia. Esta lista é compartilhada e mantida pelo conjunto de distribuições livres, e pode ser consultada em http://libreplanet.org/wiki/FreedSoftware.

O passo seguinte é modificar aqueles programas que, sendo majoritariamente livres, contêm peças privativas ou têm algum outro problema ético como recomendar software não livre. Este é o caso do Firefox, que nós distribuímos com o nome de "Navegador Web" e que somente recomenda os add-ons livres contribuídos pelos usuários em http://trisquel.info/en/browser

A outra grande peça a limpar é o kernel Linux, que contém um amplo conjunto de peças não livres, na forma de arquivos de firmware binário ou "blobs". Nosso kernel é a combinação do distribuído por Ubuntu -com seus patches e melhorias- com Linux-libre, a versão do Linux mantida pela FSF América Latina.

  • Usuários não sentem falta dos componentes privativos?

Às vezes, especialmente de alguns drivers. O efeito de distribuir somente drivers livres é que alguns componentes funcionam com suporte parcial -como cartões gráficos, que nem sempre têm aceleração 3D- e outros que não funcionam em absoluto, como vários cartões wireless desgraçadamente comuns. Porém, salvo alguma exceção os usuários entendem que o problema está no fabricante do componente -que não respeita seus clientes- e não no Trisquel, pelo que compram substitutos compatíveis ou prescindem de usar o dispositivo.

Quanto aos programas quase não há queixas, o software livre alcançou um nível muito competitivo e há alternativas livres para quase tudo. Uma das poucas carências atuais é a de um suporte completo a Flash, especialmente para vídeos online. Trisquel inclui o reprodutor livre Gnash que, ainda que seja compatível com YouTube e outros sítios similares, ainda não está terminado e precisará de vários anos de desenvolvimento para ficar realmente cômodo. Espero que nesse tempo o uso de Flash vá sendo substituído por alternativas melhores como HTML5.

Um detalhe interessante é que muitos usuários esperam que Trisquel não reproduza MP3 ou qualquer outro formato coberto por patentes de software, quando em realidade reproduz multimídia em quase qualquer formato existente. Nossa política com respeito a essas patentes é que não deveriam existir -de fato, são um problema local de alguns países como EUA- e que excluir programas livres por problemas de patentes é ajudar os donos das mesmas a limitar nossa liberdade.

Além do mais, tudo -incluindo coisas como o clique duplo e a possibilidade de desligar o computador- parece estar patenteado, então se realmente eliminássemos programas devido a isso distribuiríamos CD's em branco.

  • O LiveCD das versões mais recentes do Trisquel não oferecem mais a opção de iniciar em português. Isso quer dizer que a tradução para português deixa a desejar?

Não, muito pelo contrário. Nesta versão quisemos continuar ampliando o suporte a idiomas, que já era extenso, mas em vez de adicionar um par de idiomas mais decidimos ter dois isos, um mais leve em formato de CD com suporte completo a inglês e espanhol, e um DVD internacional -a ponto de ser publicado- com mais de 50 idiomas que cobre um conjunto muito mais amplo de usuários. Além disso e como sempre, o instalador do Live CD permite selecionar qualquer idioma que, se não estiver disponível, é baixado dos repositórios durante a instalação. O DVD internacional será a base para a novo cartão de sócio da FSF, entre outros projetos.

  • Além da dessa versão internacional (i18n), há também uma versão mini. O que ela traz de diferente?

A edição mini está orientada a equipamentos pouco poderosos, como netbooks e computadores de certa idade. É pequena e leve, baseada em LXDE, e inclui o navegador Midori -que utiliza webkit-, o reprodutor Mplayer e o editor de texto Abiword entre muitas outras utilidades. Tentamos incluir todas as funcionalidades habituais, de forma que se removam poucas coisas em comparação à sua irmã maior. Como ocupa uns 450MB pode-se levála como sistema live em um pendrive de 512MB com espaço para arquivos persistentes.

  • Trisquel é distribuído através de torrents, além de uma rede de mirrors http. Vocês já enfrentaram algum problema jurídico por causa dos torrents?

Nunca tivemos problemas. O torrent -como qualquer outro sistema P2P- é uma ferramenta que se pode usar para muitas finalidades, e dificilmente se poderia protestar por usá-lo para distribuir software livre. Além do mais, creio que é difícil encontrar outros usos que sejam reprováveis, pelo que há muito incluímos clientes de P2P na instalação padrão do Trisquel, para incentivar os usuários a compartilhar recursos e ajudar-se mutuamente.

  • Já é possível comprar computadores com Trisquel pré-instalado? Há planos ou desejos nesse sentido?

Sim, fomos informados sobre duas empresas que vendem computadores com Trisquel pré-instalado: Los +Alamos Computers e Zareason Inc. Há pouco outro fabricante se pôs em contato conosco para começar a fazer o mesmo, com ideia de doar parte das vendas ao projeto.

É interessante destacar que desde as últimas versões se inclui suporte para pré-instalação OEM, que permite ao fabricante enviar o equipamento ao cliente de forma que durante o primeiro boot se cria o usuário e se termina a configuração do mesmo. Também simplificamos a personalização do artwork, para simplificar para os vendedores a possibilidade de incluir seu logotipo no boot do sistema se assim desejarem.

Também é importante lembrar que recentemente a FSF publicou uma série de critérios para identificar e promover empresas fabricantes de hardware que respeita a liberdade dos usuários, e encorajamos as que leiam isso a aderir a esses critérios. Se o fizerem, estaremos encantados de colaborar com elas, oferecendo suporte e desenvolvimentos sob medida.

  • Como alguém pode colaborar? Há grupos de trabalho com focos específicos?

Nesses seis anos recebemos constantes mensagens oferecendo colaboração com o projeto, o que é um grande impulso para o moral e nos ajuda a seguir adiante, mas em muitas ocasiões é difícil canalizar porque a maior parte das tarefas que fazemos são bastante complexas e requerem bastante experiência.

Por isso estamos reorientando parte do projeto para tornar mais fácil que se possa aproveitar esse entusiasmo por parte dos usuários, o resultado é um conjunto de melhorias para que nosso sítio seja um grande centro de colaboração, onde usuários com qualquer nível e experiência possam aportar recursos como documentação, suporte, reviews de programas, capturas de tela, add-ons para o navegador, artwork, traduções, etc.

Quanto à organização do trabalho a verdade é que somos muito poucos desenvolvedores para nos distribuir em grupos, mas espero que quando publiquemos nosso novo sítio a comunidade tenha mais facilidade para colaborar e se coordenar.

Há alguns meses abrimos a a possibilidade de ajudar através de lojas de merchandising e doações, e impulsionados pelo entusiasmo da comunidade, acabamos de iniciar o programa de sócios, que permite realizar uma doação fixa mensal de forma que os recursos sejam recebidos de forma previsível, garantindo a sustentabilidade do projeto. Estas iniciativas começaram com muita força, devo dizer que estou entusiasmado e agradecido pela generosidade da comunidade Trisquel. Muito obrigado a todos!

  • Agradecemos pela disposição para responder a nossas perguntas. Alguma palavra final para nossos leitores?

Tão somente agradecer aos milhares de usuários que confiaram no projeto durante todos esses anos, e à comunidade que nos apoia a cada dia com seu trabalho e sua disposição.


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