Pirataria

Alexandre Oliva

Publicado na vigésima edição, de novembro de 2010, da Revista Espírito Livre.

É esquisito escrever sobre um assunto sobre o qual sei tão pouco. Não fosse por um livro que Richard Stallman me emprestou ano passado, eu provavelmente ainda estaria sob influência de uma visão romântica sobre as origens e a prática da pirataria. Não mais.

Aprendi que piratas foram criminosos sanguinários, patologicamente violentos, capazes de tratar com o mesmo rigor assassino tripulantes, passageiros e escravos dos navios pilhados, e de abandonar à própria sorte em ilhas desertas companheiros que escondessem parte dos tesouros saqueados só para si. Limites à sua crueldade, aparentemente, não havia, com uma exceção conhecida: forçar inimigos a caminhar sobre a prancha com olhos vendados e mãos amarradas para morrer no mar é fruto da imaginação de romancistas, não encontrando respaldo na realidade.

É certo que os navios piratas eram democráticos. Nem poderia ser diferente: num bando de psicopatas valentões (as mulheres piratas, raríssimas, eram igualmente valentonas), se a minoria não entra de livre e espontânea vontade no esquema da maioria, a livre e espontânea vontade da maioria se impõe à força sobre a minoria sobrevivente. Assim, democraticamente, se determinava o capitão (em alguns casos dono da embarcação), o código de conduta, a divisão dos futuros resultados da empreitada, de preciosidades a escravos, e as indenizações por eventuais ferimentos em combate e consequentes amputações pelo cozinheiro (!!!) de bordo.

Se combatiam alguma injustiça, era a má distribuição de ouro e munição: tratavam de oferecer balas e metais cortantes aos menos favorecidos em termos de armamento, em troca de seus metais preciosos e de quantidade útil de escravos, abandonando os demais ainda acorrentados à nau-fragante ou na vila em chamas.

Singravam em seguida para algum porto amigo (entenda-se, previamente conquistado por piratas) para eventuais reparos à embarcação e para rapidamente distribuir a renda que lhes coube, destilando-a em etanol, nos mais variados graus de pureza, para mais animadamente se de(le)itarem nas noitadas amaciando e esquentando carne humana, de pureza seguramente duvidosa, dada à promiscuidade profissional.

Tão logo tomassem consciência de estarem livres dos pesos dos crimes cometidos, assim como dos dobrões e lingotes, tratavam de tramar nova empreitada, em suas próprias embarcações, quando as possuíam, ou nas de outros piratas ali ancorados, repetindo o processo até um ferimento fatal em combate ou uma condenação a enforcamento.

Melhor sorte tinham os corsários, piratas contratados pelas coroas europeias para defender intere$$e$ Reai$ da ameaça de que preciosidades chegassem ao porto errado. Fração significativa dos bens capturados pelos corsários era devida ao reino, como pagamento pelo aluguel da bandeira e pelo privilégio de serem considerados integrantes da marinha real: por força de tratados internacionais, seriam poupados da pena de morte nas cortes marciais que os julgassem.

Tudo isso e muito mais aprendi ou confirmei no livro “Under the Black Flag” (Sob a Bandeira Negra), do historiador David Cordingly. Já o que segue é resultado de pesquisa pessoal inspirada não só pelo livro, mas por um pequeno trecho da descrição de um curso oferecido pelo advogado Stephan Kinsella, que traduzo: “Direito autoral tem suas raízes na censura. Não é surpresa que ainda conduza a censura hoje em dia. A lei de patentes tem suas origens na concessão de monopólios mercantis, e até na pilhagem legalizada — cartas de patente eram usadas para legalizar a pirataria no século XVI — é irônico que sejam usados contra "piratas" modernos que não são, de forma alguma, realmente piratas.”

Tornar-se corsário, ou pirata legalizado, era um privilégio para poucos. Não bastava querer: era necessário o favor da coroa, declarando sua patente de corsário em carta aberta (em latim, litteræ patente), pela qual era incorporado à marinha real. Uma carta de patente de corsário era conhecida como carta de corso (do latim “cursus”, corrida, presumivelmente ao ouro de uma embarcação mais lenta) ou carta de marca (do germânico “mark“, fronteira, que o corsário tinha permissão para desrespeitar, e/ou do provençal “marcar”, tomar como penhor, novamente se referindo ao ouro alheio), mas muitos outros tipos de privilégios eram concedidos por reis através de cartas patentes.

Por vezes favoreciam seus apadrinhados concedendo-lhes exclusividade na importação, fabricação e comércio de determinadas mercadorias. Na transição para democracias, a concessão desses monopólios foi regulamentada e democratizada, limitando o privilégio a invenções com aplicação industrial, por tempo pré-determinado, transformando um arcaico privilégio real num incentivo à publicação de invenções, cujo inventor, na ausência do incentivo, poderia manter secretas para gozar exclusiva e indefinidamente das vantagens produtivas por elas propiciadas.

Algumas das mercadorias cobertas por determinadas cartas patentes eram livros: monarcas totalitários viram por bem permitir seletivamente sua impressão na nascente indústria editorial, censurando a publicação, a importação e o comércio de material contrário aos interesses reais. Na transição democrática, o arcaico privilégio real transformou-se em artifício para aumentar a disponibilidade de livros para o público, concedendo aos autores o poder temporário de autorizar, com exclusividade ou não, a impressão e o comércio de suas obras, a título de incentivo para a publicação de obras que, na ausência de ofertas favoráveis pelos editores, poderiam permanecer indisponíveis.

Infelizmente, a confusão hoje existente entre marcas para proteção do consumidor, patentes para acelerar o progresso científico e tecnológico e direitos autorais para promover a difusão da cultura provavelmente advém não de sua origem no mesmo mecanismo arbitrário e arcaico de concessão de monopólios, as cartas abertas reais, mas sim da distorção desses diversos mecanismos, de privilégios monopolísticos limitados, almejando cada qual um diferente tipo benefício para a sociedade democrática que os concede, a um novo arcabouço único, agora enquadrado e refraseado como se fosse um tipo de propriedade.

Tal enquadramento, além de buscar confundir os diferentes mecanismos e esconder seus objetivos democráticos, tenta legitimar sua expansão e enrijecimento muito além do ponto em que supostamente trariam os benefícios sociais originalmente almejados e jamais comprovados, retornando à injustiça, à arbitrariedade e ao totalitarismo das antigas monarquias, agora monopólios.

Através da confusão, da distorção e do enquadramento falacioso como propriedade, os monopolistas que os propõem obtêm permissão e apoio de nossas instituições governamentais, que invadiram, corromperam e plutocratizaram, para saquear nossa cultura, sitiar nossa tecnologia, envenenar nosso alimento, sequestrar nossa saúde e escravizar nossos cidadãos. As atuais leis que instituem esses monopólios nos remetem às cartas de marcas, cartas patentes, cartas de registro (já nem mais necessário) de direitos autorais. São cartas de corso, e a nação inimiga que os corsários corporativos têm permissão governamental para atacar são a humanidade.

Chega de corrupção, de humanos domesticados servis à espécie dominante: os corsários corporativos, violentos valentões psicopatas como os corsários e piratas de outrora. Já passou da hora de reprogramar as corporações para colocar o respeito à humanidade acima do lucro imediato, insustentável e desumano. Quando vamos começar? Será que ainda dá tempo?


Copyright 2010 Alexandre Oliva

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