Linguagem para Programar

Alexandre Oliva

Publicado na vigésima-quarta edição, de março de 2011, da Revista Espírito Livre.

Quando me perguntam o que eu faço da vida e respondo que trabalho em compiladores, normalmente ficam me olhando com aquela cara de “não tenho a menor ideia do que ele quis dizer, mas tenho vergonha de perguntar”. Aí eu explico que escrevo programas de computador que traduzem programas de computador de linguagens de programação que gente (a?)normal como eu entende, para linguagens que os computadores entendem, programando-os para que façam o que a gente quer, ou pelo menos aquilo que dissemos para eles fazerem. “Ah, tá”, dizem, mas a cara não muda muito.

De fato, controlar computadores é bem mais fácil que humanos, pois aqueles não têm vontade própria, ainda que por vezes pareça que sim. Mas há meios conhecidos para contornar a vontade própria dos humanos! Já teorizava George Orwell, na obra prima 1984, que nossa mente só registra e pensa aquilo que conseguimos expressar nalguma linguagem que conheçamos. Daí a ideia do Partido, na obra, de construir a Novilíngua para que pensamentos subversivos fossem literalmente inconcebíveis. A linguagem e a bagagem cultural afetam a forma como percebemos o mundo e, por conseguinte, nosso comportamento. Acabam sendo também linguagens para programar, ainda que os computadores afetados não sejam pastilhas de silício, mas massas cinzentas baseadas em carbono.

Um médico com quem conversei outro dia falou que dizer a um paciente um prognóstico como “5% de chance de sobreviver” ou “95% de chance de morrer” carrega a mesma informação, mas afeta o comportamento de forma bem diferente: no primeiro caso, o paciente tende a se agarrar à chance de sobreviver e batalhar pela vida, enquanto no segundo, tende a já se sentir derrotado. É, é ilógico, mas não somos Vulcanos, e é difícil imaginar que as pressões evolutivas e culturais que levaram ao desenvolvimento da espécie humana pudessem levar ao desenvolvimento de um pensamento puramente lógico.

É justamente aí que se abre espaço para sermos manipulados, seduzidos, guiados, controlados, programados e explorados. Afinal, a emoção, a vontade e o desejo de satisfazer necessidades, das quais por vezes sequer temos consciência, motivam e guiam muitas de nossas ações, e isso tudo pode ser e é explorado por quem tem a ganhar com isso. Daí a importância de tomar consciência desses mecanismos: para ter alguma chance de se defender.

Quem trabalha com propaganda e marketing sabe bem disso: não hesitam em usar corpos atraentes para despertar um prazer estético que, se não prestarmos atenção, associaremos aos produtos apresentados. É assistindo a crianças expostas a reclames em canais de TV infantis, logo antes dos grandes feriados comerciais, que se compreende como nativos da América e da África, já bem crescidinhos, aceitavam trocar suas preciosidades e até seus semelhantes por espelhinhos, assim como outros, mais recentes, trocam sua aposentadoria, sua viagem de férias ou até sua liberdade por espelhinhos mais modernos, como telefones-cela de última geração.

Assim se entende como alguns monopólios, algo sabidamente ruim para a sociedade em geral, foi promovido por vendedores beneficiários e aceito e mantido pela sociedade sem qualquer evidência de que tragam benefício a ela. A estratégia atual é apresentá-los como algo desejável por muitos: propriedade, ainda que uma análise cuidadosa leva à conclusão óbvia de que direitos autorais e patentes nada mais são que afrontas à propriedade, pois limitam o que alguém pode fazer com bens que supostamente lhe pertencem.

Ainda assim, ressoa-se o termo para esconder os mecanismos monopolistas que promovem, transformando a grande maioria em consumidores, gado humano que paga pela própria ração, enquanto endeusa criadores e inventores, cujos direitos autorais e cartas-patentes sobre invenções são supostamente honrados, mas na realidade beneficiam quase que exclusivamente os intermediários monopolistas que promovem esses institutos.

Atente para o uso cuidadoso, por eles, dos termos “criador” e “consumidor”, induzindo a um pensamento de castas em que alguns privilegiados produzem o que nós queremos consumir, e portanto merecem que os sustentemos. Fica mais perigoso ainda quando levam essa ideologia de séculos passados para salas de aula onde crianças, ainda sem o senso crítico plenamente desenvolvido, são doutrinadas a assumir o papel de consumidores e respeitar a tal propriedade imaginária.

Atente também para o uso do termo “pirata” para quem ousa desafiá-los. O termo traz consigo não só sentimento de aventura fora-da-lei, mas também a culpa por se apropriar de algo que não é de direito. É um poderoso refrão para desqualificar a crítica aos modelos exclusivos e monopolistas de comercialização de bens intelectuais. Assusta-me que o termo “genérico”, antes aplicado com conotação positiva a medicamentos de qualidade já não mais sujeitos a monopólios intelectuais, vem adquirindo conotação negativa, como algo de qualidade inferior, ou mesmo no sentido de confrafacção ilegal. A quem interessa sua desqualificação?

Outro termo que merece análise é o “crédito”. É um termo que certamente traz um sentido positivo: “acreditamos em você”. Mas no mundo financeiro, é curioso como um cartão de débito permite débitos de uma conta corrente, reduzindo o saldo, mas um cartão de crédito não lança créditos nem aumenta o saldo: é uma forma de endividamento. Mas se o chamassem de “cartão de dívida”, não soaria tão desejável!

E ai de quem tenha caído na armadilha do crédito fácil! Os juros cobrados são cuidadosamente arranjados para não parecerem juros compostos. Quem se afunda em dívidas perde o controle sobre seu futuro, isto é, perde a liberdade! Passa a trabalhar não para satisfazer suas próprias necessidades e desejos, mas para cumprir a obrigação que assumiu, de pagar os juros e, com muito esforço, as dívidas. Há um termo que descreve quem trabalha sem poder colher seus frutos: escravo. O endividamento é a nova forma de escravidão. Mas, se chamassem de escravidão, ninguém entraria nessa fria!

Também deixa de controlar o próprio futuro, e até o presente, quem se deixa seduzir por plataformas de software e hardware privativos. Seus fornecedores têm formas de controle sobre os usuários tão poderosas que praticamente dispensam de mecanismos de protesto e cobrança de dívidas: uma entrada barata se compensa dificultando a saída e cobrando muito de quem ainda não conseguiu sair. Armazenar dados em formatos secretos, treinar funcionários ou mesmo estudantes em plataformas privativas são todas formas de controlar decisões futuras do cliente: são os juros do endividamento implícito no modelo privativo, que torna o usuário cativo.

Assim como o anúncio do cartão de dívida, que só menciona as facilidades, a programação mental presente no anúncio de software privativo não menciona esse endividamento de liberdade. De fato, valem-se de outros artifícios de programação mental: “não dá pra viver de software grátis“, trocando o significado de Free, e “ninguém se importa com o código fonte”, desmerecendo o atributo que alguns dissidentes do movimento Software Livre, também como artifício de programação mental, escolheram destacar em detrimento da liberdade. E, de fato, pouca gente vai usar mesmo o código fonte, porém o que mais importa (a liberdade que ele proporciona) não exige que muitos o usem, mas sim que muitos possam fazê-lo.

Cabe a nós, cidadãos, aprender a detectar essas armadilhas da linguagem que usam para nos programar, para que não nos tornemos consumidores passivos; para que possamos preservar e defender nossas liberdades ou, se um dia, por vontade própria, assumirmos compromissos que as limitem, não o façamos por menos que elas valem. 'credite em mim, é algo que devemos a nós mesmos!


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