Gato por Libre

Alexandre Oliva

Publicado na vigésima-quinta edição, de abril de 2011, da Revista Espírito Livre.

Sabe aquele tipo que marca jantar de vegetarianos na churrascaria rodízio? Absurdo, né? Tem um amigo meu, vegano, que diz que não, que é nelas que estão os melhores buffets de saladas. Mas não vem ao caso, até porque não é desse tipo que quero falar, mas sim do cozinheiro que acredita que não é saudável viver sem carne, e por isso resolve trabalhar num restaurante vegetariano, para colocar um pouco de proteína animal na dieta dos clientes, sem que eles percebam e assim não sintam qualquer desconforto. Tem cabimento?

Cabe uma contextualização. Tem gente que adota o vegetarianismo porque é mais saudável, isto é, porque é melhor para si mesmo. Já o veganismo envolve uma questão ética: o respeito à vida e à liberdade dos animais. Dá pra entender que o cozinheiro que põe carne escondida na comida tanto do vegetariano quanto do vegano está não só agindo de forma enganosa, mas também desrespeitando e prejudicando a ambos em suas escolhas, né?

Lamentável é como tem gente que se crê do Software Livre, mas que faz igualzinho ao tal cozinheiro: sai por aí promovendo o uso de software privativo escondido em distros, apresentando-as como Livres. E é aí que mora o perigo: a droga que alguém escolhe consumir e faz mal só pra si mesmo é problema só seu, mas na hora que começa a incentivar que outros usem a mesma droga, está preservando e alimentando o problema social que o movimento Software Livre foi criado para tentar resolver.

É por isso que fico aborrecido quando vejo gente promovendo, em eventos de Software Livre, distros como Ubuntu, Fedora, Debian, Arch, Slackware, Slax, OpenSuSE, entre outras, para usuários que pedem e esperam Sofware Livre. Tipo assim, para cada uma dessas distros há uma similar Livre que não induz usuários a cederem sua liberdade: Trisquel, BLAG, gNewSense, Parábola, Kongoni, RMS e Tlamaki, respectivamente. Não cabem desculpas como “é mais difícil” ou “não sei como instala”: essas distros usam a mesma base de software que as correspondentes (parcialmente) privativas, então os processos são essencialmente os mesmos.

Além dessas, há várias outras distros que têm compromisso com, digamos, não induzir vegetarianos ou veganos a comer carne. UTUTO foi a primeira a adotar essa posição coerente como o posicionamento ético do movimento, mas há diversas outras distros, como Drágora, Dyne:bolic, Musix e Venenux, já consolidadas em gnu.org/distros, e Amagi, ConnochaetOS, DelphOS, GNU+Linux from Source Code e VegnuX NeonatoX, ainda em desenvolvimento ou avaliação, mas já com o compromisso público de respeitar a liberdade do usuário e não induzi-lo ao erro.

E aí, galera, vamos vestir a camisa da liberdade de software pra valer? Mostrar pra todo mundo o destino certo, mesmo quando, pela razão que seja, a gente escolha para si mesmo uma distro que exija uma verificação cuidadosa de quais componentes escravizam e exploram animais? Tá esperando o quê? Passar o espeto de linguiça enroladinha de gnu moído com pedaços de ovos de pinguim? Gato por libre, não, né?


Copyright 2011 Alexandre Oliva

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