Ah!, a Falta que Ela Faz

Alexandre Oliva

Publicado na décima-primeira edição, de fevereiro de 2010, da Revista Espírito Livre.

Uma porção de gente já ficou sabendo que, em pleno Carnaval, decidi interromper um longo relacionamento. Pra quem não viu, segue cópia da carta aberta que escrevi para quem me traiu minha confiança:

Caro Google,

Estamos juntos há vários anos, mas devo dizer que ultimamente vinha pensando cada vez mais em romper com você. Sua recente traição pública me fez decidir que não quero mais estar envolvido com você. Entendo que seja Dia de São Valentim, que é dia dos namorados no seu país de origem, e também Carnaval, mas... o que você esperava que eu fizesse? Confiança é algo que se constrói com dificuldade ao longo de anos, mas se perde numa fração de segundo.

Faz tempo que lhe dou acesso a algumas partes íntimas da minha vida. No começo, eram só arquivos de listas públicas. Aí, você me ajudou a manter contato com amigos que de outra forma eu talvez nunca mais encontrasse. Aí você começou a escutar minhas conversas, mas até isso era mais ou menos ok, pois eu tinha aceitado, não tinha? Você sempre disse que eu podia confiar em você, e eu confiei. Não parecia que você iria compartilhar a informação particular que eu compartilhei com você, então a confiança foi aumentando ao longo dos anos.

Mas outro dia conheci um lado seu que não conhecia, dizendo na TV o quanto você valorizava a privacidade: que se havia alguma coisa que eu não quisesse que ninguém soubesse, eu não deveria fazer essa coisa. Ainda assim, achei que fosse um simples engano seu, e que eu ainda podia confiar em você, então eu continuei com você.

E aí o Buzz me atingiu. Foi demais pra mim.

Até onde sei, não dependo de minha privacidade neste momento para minha segurança física, como Harriet Jacobs, ou para o desempenho de meu trabalho, como jornalistas que tiveram suas fontes expostas quando Buzz foi empurrado para cima deles.

Mas, assim como confiança, privacidade é algo que custa dedicação ao longo de anos, e um pequeno erro desfaz um monte de trabalho duro. Não quero esperar pelo dia em que eu perceba que preciso de minha privacidade de volta.

Google, perdi a confiança que tinha depositado em você, mas não acho que seja tarde demais para eu evitar perder também minha privacidade. Estou fechando nossas contas conjuntas, esvaziando as gavetas que você reservou para mim no seu closet, destruindo as chaves depois de trancar as portas, e não vou lhe deixar mais acessar minhas partes íntimas.

Também estou dizendo a todos os nossos amigos que eu terminei com você, e por quê. Também vou convidá-los a se manterem em contato comigo através de outros meios.

Para mensagens instantâneas, podem chegar a mim em lxoliva@jabber.org e lxoliva@jabber-br.org. Mesmo aqueles que escolham continuar com você podem registrar esse endereço alternativo no GTalk, ainda que eu preferiria que se registrassem em jabber.org usando alguma implementação em Software Livre do protocolo de mensageria instantânea XMPP adotado pelo GTalk, como o Pidgin.

Para redes sociais, vou continuar com a rede do PSL-Brasil, que roda Noosfero, e gNewBook, construído sobre elgg. Não se preocupe, Google, não vou entrar no Facebook, seria pelo menos tão burro quanto continuar no Orkut.

Para microblogging, continuo no identi.ca, que roda StatusNet.

Pidgin, Noosfero, elgg e StatusNet são todos Software Livre. Eles respeitam as liberdades essenciais de seus usuários, inclusive usuários através da rede. Eu sei que tenho direito de compartilhá-los com meus amigos, adaptá-los para minhas necessidades, instalar minhas próprias cópias e configurar minhas próprias redes interoperáveis se eu quiser, e muito mais. Ao contrário de outros serviços de microblogging, redes sociais e mensagens instantâneas. E, ainda por cima, estou amando desenvolvedores deles.

Quanto a e-mail, uso lxoliva@fsfla.org para assuntos de Software Livre e oliva@lsd.ic.unicamp.br para outras coisas... E-mail é pra ser particular, então não recomendaria usar qualquer serviço de terceiros, mesmo que construído sobre Software Livre. Nao é difícil configurar seu próprio serviço de e-mail via web; eu mesmo administro os servidores dos dois endereços pessoais que uso. Não têm um exército de empregados seus por trás deles, mas dada a entrevista do funcionário do Facebook, um exército assim parece mais uma maldição que uma bênção.

Google, se precisar, você sabe onde me encontrar e, se não soubesse, há outros serviços de busca por aí que podem saber. O mesmo vale para todos os meus amigos. Vejo vocês por aí.

Até blogo,

Já faz quase um par de semanas que tomei a decisão e, olha... Uma coisa preciso reconhecer: foi bem fácil deixar tudo para trás.

Não me agrada entrar em relacionamentos de dependência, então eu já mantinha cópia local de todos os meus dados: mensagens, contatos, calendários, etc. Google sempre fez questão de me deixar manter essas coisas, abertamente, inclusive em formatos abertos livres, pra que, se um dia eu quisesse ir embora, eu não seria impedido. É uma atitude exemplar, digna de respeito e admiração, pois não se vê muito por aí.

Outra coisa que meio que me surpreendeu foi que eu continuei usando alguns serviços que não esbarravam em questões de privacidade. Busca e mapas foram os que eu percebi: podem ser usados anonimamente, uma vez removidos os biscoitinhos que Google continua me mandando, mas já não aceito mais.

Dos outros serviços, não senti falta. Pelo contrário: estou livre do ruído constante do Orkut, não preciso mais fazer controle duplo de Spam (e se alguém mandasse mensagem pro endereço do GMail e caísse na caixa de Spam da qual não tinha como receber cópia automática?), estou tranquilo que a caixa do GMail não vai lotar de novo, não preciso mais ver como fazer pra separar a parte particular da pública no meu calendário no ORG-Mode do GNU Emacs, nem tentar achar um jeito de alimentar o calendário do Google a partir dali.

O melhor de tudo é que ninguém mais fica pensando que eu passava o dia no Orkut, ou que eu usava a página do GMail carregada de Obfuscript, só porque o Pidgin se registrava com o GTalk. Como poderia sentir falta dessas coisas?

Mesmo assim, uma porção de gente achou o rompimento exagerado, questionando até se eu não estava usando dois pesos e duas medidas. Na verdade, minha política de evitar confiar informação pessoal a terceiros vem se aguçando há bastante tempo. Google era uma exceção, e deixou de ser, justamente porque já não mais me parece, digamos assim, boa companhia, em que se pode confiar.

Justamente pela espectativa excepcional senti minha confiança traída. Os problemas de privacidade no Facebook, que mencionei na carta, não me surpreenderam; estão mais para típicos que absurdos. Os acidentes que aconteceram no Google no passado, tipo quando gente começou a encontrar, através do serviço de busca, documentos particulares de terceiros armazenados no Google Docs, são parte do risco de deixar a informação nas mãos do outro, por mais responsáveis que sejam. Não dá pra qualificar um acidente desses como traição de confiança.

Mas o caso do Buzz foi diferente. Certamente não foi um acidente na linha daquele do Google Docs. “Fez falta, sim!”, talvez dissesse Arnaldo Cézar Coelho, “falta clara, pra cartão vermelho, muito bem marcada!” De fato, só vejo duas linhas de cenários possíveis que conduzem a essa falta.

Numa delas, algum funcionário, preocupado e responsável, chamou atenção pra questão de privacidade da publicação automática de contatos particulares no Buzz: além de ser um uso público inesperado de informação particular, levanta riscos para relacionamentos pessoais (já em risco, vá lá), para jornalistas e suas fontes anônimas, para ativistas de direitos humanos perseguidos por tiranos (não é irônico que, poucos dias após denunciar a invasão chinesa, Google torna pública a informação que os invasores buscavam?), e sabe lá pra quem mais. Aí, um gerente comercial mais preocupado em tentar ganhar espaço no imenso mercado de redes sociais, em que Google está atrás, descarta a objeção e vai em frente com o plano de construir a rede do dia para a noite com contatos particulares. Péssimo, né?

Noutro cenário, nenhuma das inteligentíssimas pessoas que trabalham para o Google e estavam envolvidas no projeto considerou nada disso. Honestamente, não sei qual das possibilidades é mais preocupante.

Não que eu tenha perdido alguma coisa. Eu era relativamente cuidadoso com as informações que disponibilizava pro Google. Porém, tendo pontos de contato públicos, eu acabava induzindo outras pessoas a compartilharem informação com Google, seja quando queriam entrar em contato comigo a respeito de assuntos pessoais, seja quando simplesmente seguiam o modelo que eu adotava, sem saber dos cuidados que eu tomava. Por isso, achei melhor dar um basta.

Além disso, talvez eu tenha mesmo tomado menos cuidado do que deveria, dadas as novas circunstâncias. Aliás, isso levanta um ponto importante. Tem gente que não está nem aí que seus contatos sejam públicos, e por isso minimiza o problema do Buzz. Mas será que se importaria se o conteúdo de suas conversas ou correios eletrônicos fosse exposto? Desta vez, a informação que Google publicou não lhes incomodaria, mas e da próxima? Quem pode saber que novas circunstâncias surgirão?

A política pode mudar de um instante para outro, como mudou com o Buzz. Apesar de vários dos problemas do Buzz terem sido corrigidos prontamente, a confiança de que essas questões seriam levadas a sério e tratadas adequadamente, de modo a evitar problemas, e sem precisar de protestos generalizados, já se foi. Pena.

Quem já achava que era uma questão de bom senso, que não cabia confiar no Google para questões tão sensíveis como integridade física, contatos com fontes anônimas, redes de combate a tirania, teria enfrentado minha discordância antes, pois eu via Google defendendo na justiça a privacidade até de prováveis pedófilos virtuais. Hoje, concordo: não dá pra confiar a privacidade ao Google, e tenho certeza de que Google já sabe muito bem a falta que a confiança faz.


Copyright 2010 Alexandre Oliva

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