Dormindo com o Inimigo

Alexandre Oliva

Publicado na vigésima-primeira edição, de dezembro de 2010, da Revista Espírito Livre.

“Quem cede uma liberdade essencial em troca de um pouco de segurança temporária não merece nem liberdade nem segurança” -- Benjamin Franklin

O mundo está cheio de gente que cai na conversa de privar o usuário de liberdade e controle para lhe oferecer suposta segurança. Parece que, ao ouvir ou ler sobre tecnologias que não compreende plenamente, a gente se confunde e acaba confiando justamente em quem tenta nos enganar. Por isso gosto de trazer esses assuntos para situações que todo mundo entende, pois aí fica fácil de perceber e evitar enganos.

Por exemplo, no filme que dá título ao artigo, o companheiro abusivo e controlador da personagem de Julia Roberts dizia: “não vivo sem você e não vou deixar você viver sem mim”. Mesmo contando com o respaldo da Lei Maria da Penha e de delegacias especializadas, muitas vítimas não conseguem deixar essa situação, seja por amor não merecido pelo agressor e esperança de que ele melhore, seja por dependência, insegurança e medo tais que o mal conhecido (a agressão rotineira) parece mais seguro e confortável que as alternativas imagináveis. As vítimas chegam a se esconder em casa ou maquiar as marcas das agressões para proteger o agressor, enquanto este cultiva a esperança com desculpas e promessas vãs; o medo e a insegurança com agressões e ameaças; a dependência com cerceamento, controle e a falsa sensação de segurança.

A personagem do filme, apesar da hidrofobia, aprendeu a nadar para, na primeira oportunidade, forjar um desaparecimento no mar, com suposta morte por afogamento, para escapar do relacionamento indesejado. Antes de um passeio noturno de barco, quebrou lâmpadas próximas à praia, para que a região escura lhe servisse de guia enquanto nadasse para a liberdade. Não pense que contei o final do filme: esse é só o começo, e consta que, no livro, sua nova vida é ainda mais desafiadora que no filme. Não vou dizer que sejam imperdíveis, mas podem ser inspiradores para quem precise de uma injeção de ânimo para deixar para trás um companheiro abusivo.

Corta para uma vítima se deitando ao lado de um agressor: um telefone-cela no criado-mudo; um aprisionador de canções, filmes, fotografias, mapas ou livros eletrônicos de cabeceira, controlado (possuído?) do além por espíritos destrutivos, alcoólicos ou não; um computador portátil programado para produzir regularmente não um olho roxo ou uma marca de mordida, mas uma tela azul ou uma maçã mordida; a própria rede que, numa tempestade ou vazamento, pode se virar e deixar a vítima com a cara no chão. São todos exemplos de computadores de propósito geral, potenciais companheiros fiéis, artificialmente limitados para trair, controlar, espionar, agredir e restringir a vítima.

É claro que não lhes faltam o dom da sedução, as desculpas e as promessas vãs. De fato, vários desses dispositivos parecem confirmar crenças indígenas de que câmeras podem capturar a alma; de que espelhinhos e pedras brilhantes são preciosos e irresistíveis. A dependência se mantém através de formatos e técnicas que, por meio de segredos ou outros monopólios intelectuais, dificultam o surgimento de alternativas ou as fazem parecer menos desejáveis; através da indução e preservação da ignorância, dificultando ou impedindo que as vítimas adquiram o conhecimento que as libertaria, para que fiquem contentes com as migalhas que recebem; através da exclusão econômica, retirando-lhes os recursos que poderiam usar para comprar sua alforria.

Talvez mais cruel seja a distorção que faz as agressões serem percebidas pela vítima como merecidas, para que a culpa seja mais uma amarra: é embebedar o Grilo Falante, distorcendo a consciência para que confunda certo e errado. Quando um livro é apagado remotamente, é porque seria ilegal ou imoral mantê-lo. Quando um aplicativo não é oferecido, é porque seu conteúdo é imoral, ou porque malvados desenvolvedores impedem a oferta do programa sob os termos restritivos que visam a garantir a suposta segurança. Quando o serviço via rede deixa de ser prestado, é porque o usuário foi julgado e condenado por violação de algum termo ou condição do contrato. Quando o programa deixa de funcionar ou impede um uso legítimo (DRM, a Gestão Digital de Restrições), é porque o usuário foi julgado e condenado por suspeita de querer compartilhar, ou mesmo de querer exercer seus direitos legais. Quando a máquina (ou qualquer de seus componentes) apresenta entraves ao desbloqueio ou reprogramação, o usuário que gostaria que a máquina lhe servisse melhor, que pudesse utilizá-la em todo seu potencial (ao invés de aceitar as limitações artificiais), é taxado de hacker, pirata, criminoso, utopista, radical livre, ameaça à segurança.

Mas segurança de quem, contra quê? Segurança dos modelos de negócio restritivos e abusivos contra a concorrência? Segurança do fornecedor contra direitos do consumidor? Segurança de que não haja alternativa ao “confie em mim, querida, eu cuido disso”? Ora, nada há de errado em delegar algumas decisões a alguém que tenha melhores condições de tomá-las, desde que haja razão para confiar que promovam interesses compatíveis.

Mas como saber se há razão para confiar? Um bom indício é se as decisões delegadas podem ser rejeitadas e ajustadas, ou se a acabam virando uma imposição. Por exemplo, se um casal voluntariamente concentra bens e renda sob administração de um dos dois, mas ambos mantêm poderes de decisão iguais, há confiança mútua; já se a pessoa encarregada da administração esconde informação da outra, recusa-se a dar ouvido às suas orientações, nega à outra acesso à conta conjunta em que recebem os salários, a relação deixou de ser igual: a primeira adquiriu poder sobre a outra, que se tornou dependente e perdeu sua autonomia e liberdade. Pior ainda se houver intimidação para que o salário não seja recebido de outra forma, para que os bens não sejam recuperados e colocados sob administração de terceiros, ou própria.

Assim pode ocorrer com software: um usuário deposita sua confiança e seus dados num provedor de software ou serviço. Enquanto o usuário mantiver a possibilidade de inspecionar e adequar o comportamento do sistema às suas necessidades, a relação é de confiança mútua. No momento em que o provedor deixar de oferecer essa possibilidade ao usuário, está ganhando poder sobre ele, impedindo-o de buscar alternativas. A relação se tornou abusiva, e o provedor ganhou poder sobre o usuário, que se tornou dependente, perdendo sua autonomia e liberdade.

É aí que cai a máscara do “confie em mim”. Mesmo para um usuário que entenda pouco ou nada de programação de computadores, a possibilidade de contratar um “administrador” alternativo seria perfeitamente real se não fosse cerceada, enganando a vítima com alegações tecnológicas relacionadas à segurança. Quem deseja sua segurança não lhe faz refém, pois a condição de refém não é segura, é vulnerável e indefesa.

Faz-me lembrar do filme “Eu, Robô” (particularmente do conto O Conflito Evitável, de Isaac Asimov), em que, movidos pela primeira lei da robótica (não causar danos aos humanos nem permitir que danos lhes sejam causados), robôs concluem que precisam cercear a liberdade dos humanos, para que deixem de causar danos uns aos outros e a si mesmos. Não houvessem resistido, humanos se tornariam prisioneiros, submetidos à negação da dignidade e liberdade por segurança contra (outros) danos. Mas se resistimos ao subjugo de quem obrigatoriamente colocaria nosso bem estar em primeiro lugar, é evidente que deveríamos resistir com ainda mais tenacidade a quem mantém como primeira lei a busca do lucro, que quase sempre se traduz não no bem estar, mas na exploração da humanidade.

Corta de novo pra vítima deitada ao lado do companheiro abusivo, mas agora sem dormir, planejando como vai recuperar sua liberdade. A quem tenha sido vítima de violência física ou psicológica e, mesmo enxergando a dimensão das agressões digitais, entenda a diferença de escala no sofrimento, peço compreensão: pretendo comparar os sociopáticos processos de agressão e controle, não diminuir ou exagerar o sofrimento das vítimas. De fato, escapar do sofrimento no mar digital é imensamente mais fácil: não precisa aprender a nadar (ainda que programar possa ser útil) nem temer pela integridade física! Basta acordar, reconhecer os inimigos que fingem estar do seu lado (“não vou deixar você viver sem mim!”) e, no momento oportuno, tomar distância segura. Pode aproveitar o apagar das luzes do ano que acaba para se orientar rumo a um futuro Livre. Oxalá nos encontremos lá, com liberdade e segurança! É hora de acordar... Bom dia, e ótimo ano!


Copyright 2010 Alexandre Oliva

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