Flancos Abertos por Definição

Alexandre Oliva

Publicado na edição #53, de abril de 2009, da [GNU/]Linux Magazine Brasil.
http://www.linuxmagazine.com.br/article/flancos_abertos_por_definicao

Há mais de 25 anos, o movimento Software Livre vem defendendo e promovendo liberdade na vida digital, e também desenvolvendo software que atende a critérios de respeito a liberdades essenciais. Há pouco mais de uma década, uma dissidência (Open Source) tornou-se popular promovendo o software, ao invés da liberdade, e adotando critérios bastante mais fracos, e não nos pontos que muita gente imagina.

Software é Livre quando usuários têm as liberdades, sem restrições substanciais, de (0) executá-lo para qualquer propósito, (1) estudar seu código fonte e adaptá-lo para que se comporte como desejado, (2) copiá-lo e distribuí-lo da forma que foi recebido e (3) melhorá-lo e distribuir as modificações.

Ao contrário do que muitos acreditam, Software Livre não precisa ser copyleft, nem GPL, nem parte do projeto GNU, nem aprovado pela FSF: basta poder gozar das quatro liberdades essenciais. A diferença é que, embora haja inúmeros mecanismos técnicos e jurídicos para desrespeitar as liberdades, a dissidência limitou-se a dois deles.

O mais óbvio, técnico, é a negação de acesso ao código fonte. Sem ele, não há como estudá-lo, adaptá-lo ou melhorá-lo. É tão essencial que, quando a dissidência procurou um nome para sua iniciativa, escolheu um que fazia referência explícita a código fonte. Eis que abriu dois flancos de ataque às liberdades: pela distorção do termo (basta acesso aos fontes?), e para criação de outros termos similares, aludindo à distorção e a um compartilhamento restrito. Tome confusão!

No campo jurídico, figura em destaque o direito autoral, um poder de exclusão temporário concedido pela sociedade aos autores de obras como software. Salvo limitadas exceções, um autor de software tem poder de proibir terceiros de copiar, modificar, distribuir, publicar e, no Brasil, até executar o software. Como o autor pode transferir esse poder a terceiros, chamo o detentor desse poder de “autoridade”. Chama-se licença de direito autoral a promessa da “autoridade” de não se valer (de parte) desse poder de exclusão contra um licenciado.

Nos critérios estabelecidos pela dissidência, além da exigência de código fonte, há inúmeras condições que a licença deve atender, de modo que o poder de exclusão da “autoridade” não seja usado para desrespeitar as liberdades essenciais dos licenciados.

Mas lembre que há muitos outros mecanismos de exclusão e cerceamento, que são incompatíveis não só com a filosofia que fundamenta o movimento Software Livre, mas também com os objetivos da própria iniciativa dissidente.

Contratos são um desses mecanismos. A promessa da “autoridade” a você (a licença de direito autoral) não o exime de outros compromissos que você tenha firmado ou venha a firmar com terceiros. Um distribuidor de software, ainda que não sua “autoridade”, pode exigir a adesão do futuro usuário a um contrato como condição para lhe conceder sequer acesso ao software.

O contrato, no caso, pode ser o próprio acordo de venda, ou um acordo de não divulgar (NDA), um contrato de pacote (shrink-wrap), de download ou de instalação (click-through) etc. Em se tratando de software, muitos são chamados EULAs, ou Acordos de Licenciamento com Usuário Final, ainda que sejam paupérrimos em licenças (permissões) e abundantes em restrições contratuais.

Caso desrespeitem suas liberdades, tornam o Software não-Livre para você. No entanto, a definição adotada pela dissidência do movimento Software Livre, ao limitar-se à exigência de código fonte e de permissões na licença, abriu brechas para restrições contratuais e muitas mais.

O titular de uma patente válida implementada por um Software Livre pode obter uma ordem judicial que proíba você de distribuir ou mesmo executar o software. Aí o Software deixa de ser Livre para você, pois lhe faltam as liberdades essenciais, mas não há qualquer violação dos fracos critérios da dissidência: mais uma brecha aberta.

É parecido o caso da Microvellização, um mecanismo jurídico lançado conjuntamente pela Microsoft e pela Novell, em que duas empresas conspiram para desrespeitar as liberdades de seus clientes: enquanto uma delas estabelece com o cliente um contrato restritivo de licenciamento de patentes supostamente praticadas pelo software, a outra o distribui sob licença de Software Livre. Embora esse arranjo atenda aos critérios da dissidência, o Software deixa de ser Livre para os clientes dessas empresas, pois o contrato de licenciamento de patentes veda a distribuição.

Tivoização é ainda outro caso de restrição adicional que escapa da definição dissidente, mas que torna o Software não-Livre, neste caso por mecanismos técnicos: TiVo, um fabricante de vídeo-cassetes digitais, introduziu neles artifícios de criptografia que verificam se o software tivoizado, antes Livre, está autorizado pelo fabricante para execução no dispositivo, impedindo que o usuário adapte o software para que se comporte, no dispositivo, conforme desejado.

As diferenças não terminam aí: há leis contra a desabilitação de mecanismos de restrição a cópia sendo usadas para proibir modificações; já houve codecs multimídia Livres redistribuídos com fontes, mas junto a licenças de patentes que permitiam somente a execução dos binários fornecidos; há especificações cobertas por patentes com exigências restritivas em suas licenças; há licenças aprovadas pela dissidência que transformam em obrigação a liberdade de distribuir (ou não) modificações. Todos esses casos podem tornar Software não-Livre para usuários, sem que deixe de atender à definição dissidente. Percebe o perigo?

Há empresas e empresários criativos em busca de ainda outros meios para aumentar a confusão e a divisão dentro e fora de nossas comunidades, ou para se valer da popularidade e da boa vontade que o termo dissidente gera sem respeitar as liberdades dos usuários promovidas pelo movimento Software Livre, nem gerar as consequências das liberdades propagandeadas pela iniciativa dissidente.

Esses tipos de ataque se fazem possíveis mediante a exploração de flancos abertos pelos critérios mais fracos. Ao invés de focar nas liberdades dos usuários, limitam-se ao código fonte e ao que licenças permitem, abrindo brechas para inúmeros mecanismos de restrição às liberdades essenciais e às suas consequências.

Para evitar essas distorções e ataques, que tal evitar o termo que remete a essa definição vulnerável? Que tal ajudar a desfazer a concepção errônea de que o direito autoral é um ponto chave? Que tal se preocupar com a liberdade, em vez de focar numa só permissão que pode se provar insuficiente? Que tal realçar a importância da liberdade, para cada usuário e para toda a sociedade, até para trazer as consequências benéficas que a dissidência promove? Que tal não abrir os flancos para aqueles que querem beber da nossa fonte sem ajudar a mantê-la limpa? É bem fácil: Software Livre!


Copyright 2009 Alexandre Oliva

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