Copyleft: para todos, os direitos Preservados

Alexandre Oliva

Publicado na [GNU/]Linux Magazine Brasil #38, edição de janeiro de 2008.

Da tão conhecida frase "Copyright, all rights reserved" (Direitos autorais, todos os direitos reservados) surgiu o trocadilho "Copyleft, all rights reversed" (Esquerdos autorais, todos os direitos invertidos), que dá a impressão de que copyleft inverte a lógica das leis de direito autoral. Outros preferem "all wrongs reversed" (todos os erros corrigidos), que deixa ainda mais claro o propósito do copyleft: consertar a lógica anti-social que se tem aplicado ao direito autoral, usando a força da própria lei para restaurar e reforçar sua finalidade original: beneficiar a sociedade. No caso do software, para beneficiar especialmente seus usuários e desenvolvedores.

Lá vem história

Direito autoral é um monopólio temporário que a sociedade viu por bem conceder aos autores de certos tipos de obras, a título de incentivo à criatividade. Em troca do monopólio, um número supostamente maior de obras se torna disponível, ainda que com algum atraso, para toda a sociedade usar, aprimorar e compartilhar: o domínio público.

Ao contrário do domínio público, direito autoral é uma idéia relativamente recente. William Shakespeare não precisava se preocupar sobre a legalidade de adaptar obras anteriores e até contemporâneas suas. Não fosse assim, provavelmente hoje estaríamos privados de muito de sua genialidade.

Curiosamente, é outro William, mais conhecido como Bill Gates, quem vem suprimindo energicamente, em várias frentes, a possibilidade de usuários de software se comportarem da mesma maneira.

Na frente social, já em 1976 publicou a carta aberta aos hobbistas[CBG]; mais recentemente, apóia grupos que promovem o slogan "Pirataria é roubo", tentando fazer parecer que o pilar moral do compartilhamento tem mais a ver com saquear um navio que com usar a chama de uma vela para acender outra.

Na jurídica, utiliza licenças e contratos restritivos de direito autoral, patentes e segredo industrial, assim como EULAs (contratos de licenciamento para usuário final), NDAs (contratos de confidencialidade) e outras artimanhas de cunho legal.

Na tecnológica, utiliza mecanismos de controle de cópia, limitação artificial de funcionalidade de software e hardware, impedimento de instalação de software "não autorizado" e privação de acesso ao código fonte, a forma ideal para entender como funciona e para modificar um programa, distribuindo apenas o código objeto, incompreensível para meros mortais como nós.

Inversão de valores

Pela lógica original, fazer valer o monopólio pode até parecer sensato, mas a privação do código fonte falha na contrapartida, pois impede o reuso e o aprimoramento da obra[PDI], mesmo após o término do monopólio de pelo menos 50 anos. Esse prazo mínimo descabido é imposto pela Organização Mundial de Comércio, e não sugerido pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual (um termo que só faz confundir)[NIP] como seria de se esperar.

Copyleft torna as liberdades parte integrante e inseparável do software.

A confusão de direito autoral, patentes e marcas num termo que alude a bens rivais se compara à da aplicação das mesmas regras a obras funcionais e artísticas.

Estas buscam proporcionar prazer estético, em suas muitas dimensões. Por mais especiais que sejam, não são insubstituíveis: prazer semelhante pode ser alcançável com outras obras.

Pirata é quem:
a) tem perna de pau, olho de vidro e cara de mau
b) tem um papagaio no ombro e um tapa-olho
c) tem um gancho no lugar da mão direita
d) invade e rouba a carga de navios alheios, assassinando ou escravizando suas tripulações
e) copia os mapas, livros, discos e programas de computador do capitão, com muito cuidado para não danificar os originais

Obras funcionais, particularmente software, são diferentes. Processos críticos de sua empresa podem ficar dependentes de, e engessados por, um software específico, que armazene informações essenciais em formatos secretos e que não possa ser adaptado de acordo com os interesses de quem o usa. Esse poder vai muito além do que se pretendia conceder aos autores através do direito autoral, e fica exacerbado pela crescente importância do software em cadeias produtivas e no cotidiano das pessoas.

Livrai-nos do mal

Software Livre surgiu num movimento social que entende que negar a alguém as liberdades de executar um programa para qualquer propósito, estudar o programa, adaptá-lo para suas necessidades e distribuí-lo, com ou sem modificações, é anti-ético e imoral, pois causa prejuízos financeiros e morais a quem é privado dessas liberdades e a toda a sociedade.

Escolher Software Livre para desempenhar uma determinada computação livra o usuário de monopólios de suporte, correções e aprimoramentos sobre esse software. Porém, alguém ter suas liberdades respeitadas com relação ao software não significa que todos as tenham. Um autor pode oferecer o software com liberdade para alguns e sem liberdade para outros. Pode inclusive autorizar que quem receba o software de maneira Livre o distribua, talvez modificado, de maneira não-Livre, pondo a perder as liberdades de quem mais importa: o usuário e potencial desenvolvedor do software.

A GPL não cria obrigações, apenas condiciona as permissões que concede.

Endireitando direitinho

Copyleft é uma técnica de licenciamento que evita essa ruptura. Valendo-se justamente do monopólio legal (no Brasil, as leis 9609/98, do Software, e 9610/98, de Direito Autoral), uma licença copyleft concede permissões que respeitam as liberdades do usuário, mas limitadas, de modo que o software, com ou sem modificações, só possa ser distribuído sob a mesma licença. Copyleft torna as liberdades parte integrante e inseparável do software.

Das várias licenças copyleft, algumas permitem a combinação com software sob outras licenças, mas a mais conhecida é a GNU GPL, que adota um copyleft forte: tanto a obra original quanto suas derivadas só podem ser distribuídas sob os mesmos termos e condições.

Há quem a chame de licença viral, querendo fazer parecer que a licença é uma doença cuja forma de contágio é o mero contato físico. Na realidade, as liberdades são uma herança que o software sob licença copyleft deixa para todos os seus descendentes, sem afetar obras que não sejam dele derivadas.

Com trato ou sem licença?

left<=>esquerdo
right<=>direito
wrong<=>errado

A GPL não cria obrigações contratuais, apenas condiciona as permissões que concede, deixando a lei prevalecer quando as condições não são respeitadas. Se eu digo: "pode estacionar seu carro na minha garagem", estou concedendo uma permissão legalmente necessária para alguém que não tinha o direito de sequer entrar no prédio onde moro, mas delimitada de tal forma que o acesso à minha residência continua não permitido. Da mesma forma, a GPL concede a permissão legalmente necessária para quem queira distribuir o software, mas delimitada de forma que a supressão do código fonte e o uso de outros termos e condições continuem não permitidos.

As permissões são indiferentes a quem não tenha intenção de ir à garagem do prédio ou de distribuir o programa da forma especificada. Quem não quiser vir ao meu prédio e não quiser distribuir o programa não precisa delas. Já quem tenha as permissões acima mas invada minha residência ou distribua software GPL com restrições adicionais não está descumprindo obrigação para comigo, mas sim agindo fora do escopo das permissões que concedi. Na ausência de permissões adicionais, esses atos são ilegais: invasão de domicílio e infração de direito autoral, respectivamente.

Por isso é tão difícil subverter o copyleft, em particular o da GPL. Negar a validade da licença é confessar infração de direito autoral, enquanto reconhecê-la, com suas condições, não ajuda a quem tenha agido fora de seus limites.

Nasce torto mas endireita

Por contrariar a concepção mesquinha da lei de direito autoral e usá-la uma vez mais em prol da sociedade, diz-se que copyleft inverte os direitos. Como isso conserta várias distorções, diz-se que copyleft também corrige os erros do direito autoral. Por ser uma idéia de tamanho avanço social, faz sentido traduzi-lo como esquerdos autorais.

Copyleft usa a lei do direito autoral não para manter o monopólio legal, mas para evitar seu abuso, garantindo o respeito às liberdades de quem quer que receba a obra, impedindo a supressão desses direitos sobre ela. Daí dizer: para todos, os direitos Preservados.

Para saber mais:

[CBG] http://en.wikipedia.org/wiki/Open_Letter_to_Hobbyists

[PDI] http://www.fsfla.org/?q=pt/node/129#1

[NIP] http://www.gnu.org/philosophy/not-ipr.html


Copyright 2007 Alexandre Oliva

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