Robota

Alexandre Oliva

Publicado na trigésima-primeira edição, de outubro/novembro de 2011, da Revista Espírito Livre.

Li muitos contos e romances de Isaac Asimov desde a adolescência. Adorava os jogos de palavras nos nomes dos robôs, os prodígios da Dra Susan Calvin e as tantas situações que exploravam e testavam condições limite das três leis da robótica. Em tempos em que fração significativa e crescente da humanidade carrega androides telefônicos não-asimovianos nos bolsos e bolsas, vale a pena lembrar a razão de Asimov e muitos que o sucederam considerarem essas leis um guia importante para o desenvolvimento da tecnologia.

Para contextualizar, convém mencionar a origem do termo robô: tem sua origem nos servos mecânicos imaginados pelo autor checo Karel Čapek, em cuja língua mãe “robota” é o adjetivo escravo, como em trabalho escravo. Os servos mecânicos de Asimov eram mantidos em condição de servitude à humanidade, embora fossem inteligentes e muito mais fortes, pois eram programados de forma a inescapavelmente cumprir três leis submissivas: um robô não deve causar dano a um humano, nem permitir, por inação, que dano seja causado a um humano; um robô deve obedecer as ordens de humanos quando isso não conflite com a primeira lei; um robô deve defender sua própria existência quando isso não conflite com as duas primeiras leis.

Não pretendo aqui discutir a questão da liberdade dos robôs enquanto seres pensantes, até porque o próprio Asimov já fez isso com sua típica maestria n'O Homem Bicentenário, que por sinal tem ótima adaptação cinematográfica. E por falar em filmes, não é possível tocar no assunto (ou explicitamente deixar de tratar dele) sem lembrar dos androides de Blade Runner, ao qual faz deliciosa alusão o projeto Replicant, uma variante Livre com L maiúsculo do sistema operacional Libre-pero-no-mucho Android/Linux, preparada para aqueles que, como os personagens do filme, anseiam por liberdade.

O tema que quero abordar é como a tecnologia imaginada por Asimov tem claríssimo seu objetivo de servir a humanidade: seus robôs são ferramentas tecnológicas construídas para atender aos comandos das pessoas (exceto quando causem danos a outras pessoas, conforme avaliação do inteligente cérebro positrônico), ao contrário das ferramentas tecnológicas atuais, cada vez mais projetadas para atender aos comandos não das pessoas, mas das corporações que os vendem.

Não bastasse o software privativo, que limita o usuário (“o sistema não permite”, diz a atendente telefônica) e impede a correção (“não tem fontes nem documentação”, lamenta-se o especialista encarregado), agora programam computadores para que o usuário não possa escolher sequer quais programas instalar! Não é só a Tivoização do GNU/Linux no videocassete digital: são fabricantes dos consoles de jogos processando e/ou ameaçando desabilitar remotamente equipamentos cujos donos tentem instalar sistemas não aprovados pelo fabricante; iPhods e outras maçãs podres que só permitem instalar aplicativos não censurados pela nave-mãe; até telefones e tabletes com Android/Linux tão travados que precisam ser liberados em duas etapas: primeiro um programa para ganhar acesso de super-usuário, depois outro para substituir o carregador de boot por um que permita programas e sistemas operacionais diferentes. O pior é que agora estão querendo estender a computação em jaula a computadores mais facilmente reconhecíveis como tal!

É claro que os apologistas dos modelos autoritários de controle vão querer argumentar que a tecnologia deve submeter a segunda lei da robótica, a obediência às pessoas, à primeira. Vão dizer que permitir alterações aos programas vai causar danos aos pobres desenvolvedores de software (ou melhor, à empresa que pagou seus salários para auferir todos os lucros do fruto de seu trabalho), ou mesmo que alguns poderiam alterar o software para conduzir atividades ilícitas daninhas a pobres artistas famosos (ou melhor, às gravadoras, aos estúdios e às editoras que lhes prometeram repassar fração mínima do que não derem um jeito de esconder ou gastar em publicidade). Falácias que qualquer cérebro positrônico detectaria como tal, não porque as empresas que se dizem prejudicadas não sejam humanas, mas porque não há qualquer evidência concreta que sustente a tese do dano, ou mesmo potencial de dano, aos humanos envolvidos; de fato, as evidências que existem apontam na direção contrária!

Mesmo assim, um robô inteligente e incorruptível pode ser manipulado de modo a causar dano a humanos sem se dar conta disso, como explorado noutros romances de Asimov, e como parece vir ocorrendo em poderes legislativos e judiciários em vários países. Como explicar de outra forma as leis que privilegiam interesses econômicos de fabricantes de fármacos em detrimento das pessoas morrendo de doenças tratáveis? Leis que levariam Justin Bieber à cadeia por vários anos, por atos brutais como publicar na Internet sua interpretação de uma canção?

Que dizer das propostas de responsabilizar prestadores de serviços de comunicação, fabricantes de computadores e desenvolvedores de software por ilícitos que não tenham impedido seus clientes de cometer? Mesmo que tal responsabilização fizesse sentido, parece-me que seria muito mais prioritário legislar a exigência de que armas de fogo e veículos automotores com condutores também de fogo impedissem seus usuários de ferir outros humanos. Os desafios tecnológicos seriam comparáveis, mas falta $uport€ ao £obb¥ pela vida humana.

Se até robôs asimovianos, com toda a sua inteligência, conseguiram errar no julgamento e tentar tomar nossa liberdade para assegurar nossa segurança física (“Eu, Robô”, também baseado na obra de Asimov, ilustra bem essa ameaça), como confiar nossa liberdade a ferramentas tecnológicas muitíssimo mais primitivas, incapazes de escutar e compreender um argumento, desprovidas de senso moral, ético ou mesmo capacidade de interpretar nossas leis e suas exceções?

Precisamos retomar o controle sobre a tecnologia que utilizamos, expondo as falácias que alardeiam uma falsa segurança para que aceitemos sacrificar a liberdade. De preferência, antes que nossas leis sejam distorcidas e reduzidas a três obrigações: (i) trabalhar para uma corporação, sem lhe causar prejuízo nem permitir, por inação, que outros lhe causem prejuízo; (ii) cumprir as demandas da corporação, desde que não lhe causem prejuízo; (iii) defender nossa própria existência, quando isso não entrar em conflito com os lucros e as ordens da corporação. Já sei como chamar nossa subespécie se não desviarmos desse caminho evolutivo: Homo laborans robota.


Copyright 2011 Alexandre Oliva

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