Repartindo o Bolo Direito

Alexandre Oliva

Chegando à praça de alimentação do Xópim, ainda de longe vi, numa das mesas da doceria, uma caixinha tipo baú, daquelas que usam para vender pedaço de torta, com a tampa levantada. Parecia vazia mas, ao chegar perto, puder ver, colada no fundo, uma fotografia da torta. Oh, não! Tarde demais! O atendente já vinha chegando com a conta da olhada.

Nem seria o caso de reclamar. Todos sabemos que a torta foi fruto do árduo trabalho criativo de seu autor, então é normal pagar para ver as fotos. Afinal, para bater a foto, alguém precisava fazer a torta, e quem faria torta de graça? Todos sabemos que a vida seria muito triste sem tortas.

Um amigo me falou que antigamente os autores vendiam tortas artesanais, e quem as comprava podia fazer com elas o que quisesse: comer, levar para casa, presentear, repartir, vender pedaços, tentar fazer outra igual, ou mesmo uma diferente... Imagine! Todos sabemos que, se isso tudo não fosse proibido, os autores de tortas não teriam como ganhar seu sustento! E como a vida seria triste sem tortas!

Sabe o que mais me contaram? Que já houve quem comprasse torta nas ruas, acreditando comprar direto do autor! Absurdo! Todos sabemos que torta vendida na rua é roubada, que o autor não recebeu nada. Ainda bem que hoje é proibido vender torta na rua. Somos muito mais felizes comprando tortas nos Xópins. Em todas as docerias de todos os Xópins, a indústria garante a qualidade e a procedência das tortas vendidas, e faz questão que só se vendam tortas de procedência conhecida. Isso é muito bom, porque a gente pode confiar nas tortas, e ter certeza de que os autores serão pagos. Se não fossem, ninguém mais faria tortas, e aí a vida seria muito triste.

É ótimo que a indústria seja tão próspera, pois assim ela contrata muito mais autores, que fazem mais tortas para comermos. Mesmo com tanta prosperidade, ela se preocupa em simplificar as coisas para nós. Até pouco tempo atrás, a gente precisava assinar contratos antes de comprar tortas. Eram lembretes sobre as coisas que a gente não devia fazer para não prejudicar os autores. O autor assinava contrato com a indústria, a indústria com as docerias e com a gente. Era tão complicado! Ainda bem que a indústria convenceu o governo a proibir o que os contratos todos já proibiam. Ficou muito melhor para todos, especialmente para os autores, que a indústria defende tanto. Se não defendesse, quem quereria fazer tortas? Haveria tanta tristeza!

Mas tem gente malvada que não respeita os autores, que faz festas clandestinas com muita torta, certamente roubada. Quem teria dinheiro para comprar tanta torta? É por causa deles que a torta anda mais cara, porque a indústria gasta muito dinheiro investigando o roubo de tortas e processando esses malfeitores. Alguns autores até começaram a reclamar, porque recebiam pouco depois de descontarem esses custos. Se não valesse a pena fazer tortas, a vida ficaria muito triste.

Como demorava para fechar as brechas da lei, voltaram os contratos, mas muito mais práticos, nos lacres das caixinhas-baú. Só algumas vêm com foto no fundo para arrecadar mais: viu, pagou. Outras vêm trancadas, não abrem. Outras têm pedaços menores, ou sabores mais baratos. É tão gostoso quando vem um pedaço premiado, todo mundo comemora! Foi tão esperta essa ideia das caixas! A gente às vezes se decepciona um pouco, mas todos sabemos que vale a pena, pois os autores agora ganham mais pelos pedaços premiados, e por isso continuam fazendo tortas. Senão, seria uma tristeza tão grande...

Volta e meia aparece gente que não entende nada de fazer torta dizendo que estamos nos decepcionando à toa, que os autores poderiam vender suas obras de outras maneiras e ganhar mais, que a indústria não reparte o bolo direito. Loucos! Vão estragar nossa alegria!

Para a Bruna, boleira e esposa do meu grande amigo Glommer.


Copyright 2009 Alexandre Oliva

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