Rede de Neuras

Alexandre Oliva

Publicado na vigésima-nona edição, de agosto de 2011, da Revista Espírito Livre.

Li nalgum lugar (por sorte não era copyleft, porque não guardei a fonte) como treinam elefantes para não fugir: amarrando-os, ainda filhotes, a estacas no chão. Ainda pequenos (tanto quanto elefantes podem ser pequenos) fazem força para tentar se libertar, mas não conseguem. Resultado: aprendem que a estaca é uma prisão inescapável e crescem sem desafiar novamente a estaca e a corda.

Elefantes nunca esquecem. Não percebem que sua força cresce com eles. Ao contrário, carregam para toda a vida a memória traumática da prisão inescapável. É uma prisão para sua mente, como na Matrix, no 1984 e nos governos tiranos e plutocráticos que vêm finalmente sendo desafiados por povos ao redor do mundo. Para que o prisioneiro não escape dessa prisão mental, não pode sequer considerar a possibilidade de desafiá-la, ou a malha dessa rede de neuras se desfaz.

Produzem efeito semelhante sobre filhotes de outra espécie frases como “não mexa que vai estragar!” e “pra olhar não precisa da mão!”; a criança cresce ouvindo que não pode tentar descobrir como as coisas funcionam, que deve respeitar sem questionar as autoridades de pais, professores, mais velhos, governos e leis. Vai sendo domada, castrada em sua curiosidade e criatividade, (trans|de)formada para cumprir seu papel passivo na base da pirâmide de consumo, conforme planejado pelos plutocratas industriais e demais figuras autoritárias do tecido social que, trançado, forma essa rede de neuras.

Peço uma linha de silêncio para uma prece em homenagem a todos os espíritos hackers tão tragicamente assassinados.


... amém! É o que o filhote aprende a dizer pra autoridade. Aí, quando um Gates, Ellison, Jobs ou similar diz “não ponha a mão aí!” ou “não, não pode ver!”, acham normal, mesmo que já tenham crescido e se creiam donos do próprio nariz, ou tromba. Quando o banco ou a Receita Federal lhes diz que um programa espião “precisa ser instalado no seu computador, para sua própria segurança”, aceitam sem questionar. Quando a polícia ou o desenvolvedor do sistema operacional do telefone-cela decide rastreá-los com sinais eletrônicos, biometria e câmeras por toda parte (ó o 1984 aí de novo, gente!), interceptar e registrar todas as comunicações com a desculpa de manter a lei e a ordem, ficam olhando pra corda que os amarra e pra estaca enfiada no coração da liberdade democrática, sem se dar conta de que, sem a proteção à intimidade e aos direitos civis, a lei e a ordem logo deixam de emanar do povo, pelo povo e para o povo, servindo para manter no poder quem deveria servir ao público, mas controla os mecanismos de controle.

A autoridade que combate a contestação, seja em casa, na escola, no palácio, no éter e no ciberespaço, se opõe à liberdade de pensamento e de expressão essenciais para a democracia; à curiosidade exploratória e ao questionamento que alimentam o processo científico; à educação emancipadora de Paulo Freire; à cultura hacker que respeita e valoriza não o título de autoridade, mas a habilidade e o conhecimento, e combate as barreiras à sua disseminação. Daí o interesse dos plutocratas midiáticos que controlam as armas de distração em massa em demonizar quem ousa compartilhar cultura, descobrir e difundir conhecimento restrito e ir às ruas e ao ciberespaço para protestar contra a tirania. “Não mexa, não é pro seu bico!”

Mas elefantes não têm bico, têm tromba e, ocasionalmente, orelhas grandes, como o Dumbo, cujo nome remete ao adjetivo inglês que denota (entre outros significados) burrice. Quisera eu que elefantes de todas as espécies parássemos de aceitar os amendoins e as cenouras que nos oferecem e notássemos que temos força mais que suficiente para romper as cordas e estacas da rede de neuras que nos mantém programados, controlados e usados. Uma vez que notemos nossa força, elas só nos prenderão se formos suficientemente burros para permitir. Diferente do Dumbo, não podemos ter as duas coisas ao mesmo tempo: se tivermos orelhas grandes, não conquistaremos a liberdade para voar. Dupli-plus-nunca se esqueça disso, Neo!


Copyright 2011 Alexandre Oliva

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