Síndrome de Peter Pan Digital

Alexandre Oliva

Publicado na primeira edição, de abril de 2009, da Revista Espírito Livre.

Minha filha entrou no último ano da pré-escola que frequenta. Já está sendo preparada pra grande transição no final do ano. Em breve vai conseguir ler por si mesma. Ao contrário de alguns usuários de software, está animadíssima pra dar esse passo em direção à independência, pra não mais precisar de uma Wendy pra ler os contos que ela adora. Também, não há nenhum Peter Pan insistindo pra ela ir pra Terra do Nunca, pra jamais crescer.

Liberdade, independência e soberania são conceitos relacionados, muitas vezes mal interpretados. Não significam poder fazer qualquer coisa que se queira. Significam não estar dominado, subjugado, controlado. Significam poder fazer suas próprias escolhas, limitado por não mais que sua própria natureza e o respeito ao próximo. Afinal, a liberdade de um termina onde começa a do outro.

Software é Livre para um usuário se ele tem as liberdades de (0) executar o programa para qualquer propósito, (1) estudar seu código fonte e adaptá-lo para que se comporte como desejado, (2) copiá-lo e distribuí-lo da forma que foi recebido e (3) melhorá-lo e distribuir as modificações. Havendo restrições substanciais a qualquer dessas liberdades, o Software não é Livre, assim como o usuário. Maneiras de impor restrições há muitas: negação de acesso ao código fonte, verificação de origem no hardware ou em software de baixo nível, direito autoral, contratos, ordens judiciais, por aí vai. O diálogo entre usuário e os vilões da história (são muitos) é mais ou menos assim:

-- Posso instalar o programa no meu outro computador?

-- Nunca! Você assinou um pacto com o sangue do seu mouse!

-- Posso corrigir esse erro que está me incomodando?

-- Nunca! Quem decide o que é certo no programa sou eu!

-- Posso fazer uma cópia pro meu amigo?

-- Nunca! Vai virar tripulante do Capitão Gancho!

-- Posso liberar esse programa que eu escrevi?

-- Nunca! A patente de capitão é só minha! Já pra prancha!

-- Posso estudar como o programa funciona?

-- Nunca! Enquanto estiver nesta terra, nunca vai crescer!

Curioso é que tem gente que parece que não só acha isso normal; até diz que gosta assim e luta pela suposta liberdade de aceitar esses abusos. De fato, se essas escolhas infelizes não tivessem repercussão negativa sobre ninguém mais, se prejudicassem somente quem se joga na armadilha, seria uma liberdade legítima.

Mas quando o usuário aceita que outros tomem decisões sobre sua vida digital, colocando nas mãos deles o controle sobre o que fazem os programas que usa, além de sacrificar a própria liberdade ainda oferece vantagens aos que impõem as restrições: pagamento pelo "privilégio", receita indireta proveniente de recomendações, popularidade, efeitos de rede, entre outros.

Isso realimenta o processo: o agente agressor, percebendo vantagens, conclui que o comportamento é favorável e bem aceito e mantém ou até aumenta as restrições. O usuário, já subjugado, por vezes alienado, encontra-se em posição de fácil controle pelo agressor.

O pior é que, com o poder conferido pelas vítimas anteriores, o agressor faz novas vítimas. Essa repercussão prejudicial sobre os demais é que faz com que a decisão de realimentar o processo ultrapasse os limites da liberdade individual.

Mas o usuário que não quer crescer, que quer deixar nas mãos de outros as decisões que afetam diretamente sua própria vida digital (e a nossa), também não aceita a responsabilidade social sobre como seus atos afetam a mim, você e os demais. Ao contrário, clama por uma liberdade absoluta, sem limites provenientes da preocupação com o próximo, da ética: é a Síndrome de Peter Pan Digital.

Tal qual Peter Pan, insistem que outros trilhem o mesmo caminho dos meninos perdidos, tornando-os todos dependentes de alguma Wendy que lhes leia porque não conseguem ler. Decidem continuar não conseguindo. Não querem crescer, para preservar sua ilusão de liberdade absoluta.

O movimento Software Livre é um movimento social, não técnico. Sua filosofia está fundada no princípio moral universal da reciprocidade: trate os outros como gostaria de ser tratado. Aconselhe seus amigos a que, ao invés de prejudicar ao próximo, desrespeitando suas liberdades e/ou ajudando outros a desrespeitá-las, ajudem-no a crescer consigo.

O pozinho mágico da Tinker Bell (no meu tempo era Sininho) é pó de liberdade: é com ele e com pensamentos e sonhos felizes que a gente pode voar, crescer e alcançar o que quiser, sem prejudicar ninguém. Vai uma pitadinha de liberdade aí?


Copyright 2009 Alexandre Oliva

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