O Software era a Lei

Alexandre Oliva

Publicado na trigésima-sétima edição, de abril-agosto de 2012, da Revista Espírito Livre.

Houve um tempo em que lei era a palavra de quem tinha uma espada ou uma arma de fogo. Hoje em dia, leis não são tão comumente estabelecidas pela ameaça de violência, mas por forças políticas e sociais, o que não impede mentes autoritárias de tentar tirar poder absoluto não da pedra com a espada, que só o rei legítimo conseguiria tirar, mas da manga.

Apesar de negar ter escrito a frase “código é lei”, Larry Lessig sugere até no título de seu livro que software é um dos tipos de leis do ciberespaço. Mas software não é lei como as do Direito, que estabelecem direitos, proibições e punições para seu desrespeito; é como as da natureza, que simplesmente não têm como ser descumpridas. Quando um programa é escrito de modo a negar ao usuário a possibilidade de efetuar uma determinada operação, não há advogado, juiz ou júri que consiga convencê-lo a abrir uma exceção.

Presumivelmente é dessa constatação que vêm as frequentes tentativas de impor restrições aos usuários de software em seus próprios computadores através de medidas técnicas: a gestão digital de restrições (DRM), a tivoização, o boot restrito e outras formas de computação traiçoeira. Praticamente todas essas técnicas têm sido implementadas com erros que acabaram permitindo aos usuários escapar da jaula, instalando programas à sua escolha e eventualmente acessando os arquivos que as mentes autoritárias lhes pretendiam esconder.

Parece-me que, ante a dificuldade de implementar os mecanismos restritivos inescapáveis pretendidos, passam a depender em parte da incapacitação da comunidade de usuários os esforços de limitar as funcionalidades dos computadores de propósito geral escondidos em forma de telefones, tabletes, roteadores, GPSes, consoles de jogos, televisores e tantos outros. Se nos for negado o conhecimento necessário para sequer tentar encontrar meios de escapar da jaula e se houver leis (do direito) que proíbam sua busca e divulgação, estaremos inapelavelmente domados e controlados!

A situação fica ainda melhor para os autoritários se conseguirem convencer a sociedade em geral que programação é algo particularmente inacessível e que portanto (desafia-se a lógica) deve ser restrito a poucos, suficientemente iluminados para decidir pelos usuários o que é melhor para eles. Tarefa de casa: determinar se esse “eles” se refere aos usuários, aos desenvolvedores injustamente privilegiados por uma reserva de mercado disfarçada de regulamentação da profissão, ou aos demais autoritários de sempre.

Enquanto a restrição se dá através de equipamentos ou programas de uso eletivo, resta a opção de escolher não usá-los, ainda que possa ser difícil. Porém, quando seu uso é obrigatório, a exemplo dos programas de imposto de renda, conferem a quem detenha seu controle poderes tirânicos sobre todos os súditos obrigados a utilizá-los: podem tanto cumprir comandos do tirano que o usuário preferiria não executar em seu computador, quanto impedir que a vítima tome ações que gostaria e por direito poderia.

Ao contrário das leis em estados de direito, discutidas em sessões públicas, aprovadas em plenários democráticos e publicadas para todos, as leis impostas através de software opaco podem ser determinadas de forma arbitrária e autoritária e mantidas em segredo. Sem dúvida é teoricamente possível que um programa opaco implemente exclusivamente regras estabelecidas de forma democrática, mas somente sua publicidade permite que esse fato seja verificado pelo cidadão, garantindo que todas as normas às quais estamos sujeitos sejam por nós conhecidas.

Felizmente podemos dispor da Lei de Acesso à Informação, vigente de maio de 2012 em diante, para exigir que seja dada publicidade aos programas que o Estado poderia usar para nos controlar. É certo que a transparência dos programas pode causar desconforto àqueles acostumados a controlar seus súditos através de segredos e medidas técnicas, e alguns podem tentar argumentar que a possibilidade de modificação inesperada justifica o segredo.

Não justifica! Legislação vigente desde 2008 (IN 04/2008/SLTI) exige que software resultante de contratações públicas por diversos órgãos federais seja não apenas publicado, como manda a transparência, mas licenciado sob GNU GPL, impedindo a privativização do software mas permitindo a todos adaptá-lo, corrigi-lo e melhorá-lo. Isso pode ser particularmente útil para um cidadão que descubra que o programa não implementa adequadamente algum caso específico em que se enquadra, ou mesmo quando decida combater leis injustas ou medidas tirânicas através da desobediência civil, ainda que arcando com as consequências.

Tiranos que vêm descumprindo essa instrução normativa certamente procurarão outras desculpas para descumprir a Lei de Acesso à Informação. É dever de todo cidadão combater a tirania tecnológica das leis inescapáveis do software privativo para restaurar o estado de direito e conjugar exclusivamente num pretérito imperfeito o verbo de “o software era a lei”. Público ou privado, se a qualquer usuário ou cidadão que desejar for negado conhecimento e controle sobre o software, já era a lei.


Copyright 2012 Alexandre Oliva

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