GNU e Linux, Uma Questão de Renome

Alexandre Oliva

Publicado na edição #56, de julho de 2009, da [GNU/]Linux Magazine Brasil.
http://linuxmagazine.com.br/article/gnu_e_linux_uma_questaeo_de_renome

Em 1983, Richard Stallman lançou o projeto GNU, para construir um corpo de software suficiente para utilizar computadores em liberdade. Em 1991, ainda lhe faltava um núcleo (kernel). Foi quando Linus Torvalds publicou o seu, projetado para funcionar junto ao GNU. Outro primata (sem ofensa) o batizou Linux. Outros ainda começaram a chamar também a combinação dos dois de Linux, o que continua dando confusão até hoje.

Sempre Fizemos Assim?

Diz o folclore científico que colocaram alguns primatas numa jaula com um cacho de bananas no alto. Toda vez que algum deles tentava subir para apanhar as bananas, levavam todos um banho de água gelada. Aprenderam. Trocaram um dos primatas, que logo viu as bananas e se animou. Logo apanhou. Não as bananas, mas dos outros, que não queriam o banho gelado. Trocaram outro, que apanhou do mesmo jeito, e assim continuou, mesmo depois que todos tinham sido trocados e nenhum deles sequer sabia do banho gelado que nem levariam mais. “Todos sempre fizemos assim!”, responderiam primatas falantes ao questionamento de uma tradição arraigada, como se o comportamento anterior, justificado ou não, fosse justificativa suficiente. O curioso de usarem esse argumento para justificar chamar GNU+Linux só de Linux é que, na verdade, nem sempre fizemos assim.

Linus queria chamar de Freax esse núcleo que escreveu, mas acabou aceitando Linux. Apresentava-o como um kernel semelhante ao do Minix e ao do Unix. Ainda que tomasse como equivalentes kernel e sistema operacional, não deixava de lembrar o papel essencial do “grande e profissional” GNU, sem o qual “não se chega a lugar algum”, pois dele vinha “a maioria das ferramentas usadas com o Linux”, ainda que “não façam parte da distribuição” do Linux. Note, ele escreveu “usadas com”, não “no” Linux, e o que ele chamava de distribuição era só o núcleo, os arquivos linux-X.Y.tar. que ele publica até hoje. Mas não tardou para que surgissem distribuições executáveis combinando GNU e Linux.

Contando na História

Dos duzentos programas executáveis incluídos na versão mais antiga ainda disponível da primeira distribuição bootável, MCC Interim 0.97p2-12 (agosto de 1992), pelo menos 115 eram tomados diretamente do projeto GNU, sem contar as porções mais significativas da libc, emprestadas do projeto GNU, e outras bibliotecas menos evidentes, ligadas estaticamente. Com essa proporção de 115 para 1, não faria nem sentido chamá-la Linux, como de fato não se fazia naquele tempo.

Slackware, a mais antiga distribuição ainda viva, também não carrega Linux no nome. A partir da lista de programas de uma versão do início de 1994, pode-se ver que de seus 53MiB de pacotes binários, mais de 16MiB provinham diretamente do projeto GNU (o maior contribuidor), seguido por X, TeX e outros componentes que já haviam sido portados para o sistema operacional GNU somando pouco mais de 11MiB, e Linux, lá atrás, com duas cópias (para discos IDE e SCSI) totalizando 621KiB. Com 30% diretamente do projeto GNU, contra 1.1% Linux, nem faria sentido chamar a combinação de Linux.

Embora Linus tenha anunciado seu kernel Linux como “free” (gratuito), esse programa se tornou “Free” (Livre) somente em março de 1992, após consulta pública sobre relicenciamento sob a então recém-lançada GNU GPL versão 2, no anúncio do Linux 0.12. Já em outubro do mesmo ano, Richard Stallman convidava voluntários a preparar distribuições do GNU baseadas em Linux, e assim nasceram, com apoio da FSF, o projeto Debian e a distribuição Debian GNU/Linux, predominantemente baseada no GNU, como qualquer outra.

Removidas da licença original do Linux as restrições à venda, não tardou para que surgissem distribuições comerciais. A primeira, lançada no final de 1992, se chamava Yggdrasil Linux/GNU/X, carregando no nome seus três principais componentes.

A União Faz a Força

Essa combinação do GNU com Linux, e depois com a interface gráfica X11, foi um imenso sucesso nas comunidades de Software Livre. Desenvolvedores do projeto GNU passaram a contribuir também para o Linux, e desenvolvedores do Linux passaram a contribuir também para o projeto GNU, ainda que muitas vezes por meio de forks temporários. Muito mais significativo foi que a combinação atraiu muitíssimos novos colaboradores, e passaram não só a contribuir aos projetos já existentes, mas também a criar novos projetos destinados a funcionar nessa combinação.

Além dos voluntários, mais empresas começaram a se dedicar a essa união, criando distribuições e oferecendo-as comercialmente. Depois da Yggdrasil, SuSE e Red Hat se uniram ao conjunto de empresas contribuindo para o desenvolvimento do Linux, do GNU e de outros programas que funcionavam nesse ambiente, enquanto vendiam cópias aos entusiastas. Começaram a surgir cada vez mais aplicativos ditos para Linux, embora funcionassem igualmente noutras variantes do sistema GNU. Como não usam as interfaces do Linux, e sim as da GNU libc, é possível substituir o núcleo Linux por outro sem necessidade de alterar as aplicações, nem mesmo recompilá-las.

A Desunião se Faz à Força

Mas enquanto a comunidade GNU se preocupava em mencionar os dois componentes mais importantes da combinação e temia uma fragmentação da comunidade, desenvolvedores do Linux tentavam esconder a relevância do GNU, fazendo parecer que o mérito por todo aquele corpo de software era exclusivamente do Linux.

Tão bem sucedida foi a campanha de descrédito que hoje muita gente crê e afirma (corretamente) que Linus escreveu o Linux, mas entende (erroneamente) que se trata de fração majoritária, ou mesmo significativa, do corpo de software que integra a combinação de GNU, Linux et al. Ainda hoje, embora os dois projetos tenham crescido muito, em grande parte graças ao sucesso que alcançaram juntos, Linux continua quase uma ordem de grandeza menor que o GNU, e o GNU continua sendo o maior componente de qualquer distribuição de GNU com Linux.

Ainda que seja normal, ao dar crédito a um contribuidor menor de uma obra, dar pelo menos o mesmo crédito a um contribuidor maior, diversos desenvolvedores iniciais do Linux defendem com unhas e dentes o uso do nome de seu programa para a combinação toda. Argumentam que foram eles que completaram o sistema, ao qual faltava apenas essa peça, e por isso exigem o renome exclusivo, como se houvesse mérito maior em chegar por último. Imagine como seriam diferentes os domingos de Fórmula 1 com o Tema da Vitória fazendo fundo para berros vibrantes como “Rrrrubens, Rrrrubens, Rrrruuubens Barrichello do Brasil, num final dramááático, receeebe a bandeirada na úúúltima posição!”

De Volta ao Planeta dos Macacos

Com um lado buscando a união pela cooperação, enquanto o outro encarava a situação como uma batalha, uma competição destrutiva em que se fazia o primeiro parecer irrelevante, prevaleceu o descrédito e a agressão. E como, “desde os primórdios até hoje em dia, o homem ainda faz o que o macaco fazia”, continua-se propagando essa injustiça, e uma porção de primatas acha normal e natural agredir quem denuncia a injustiça tentando corrigi-la, pois “sempre fizemos assim!”

Mas não vejo nesse resultado uma batalha perdida, até porque estou entre os que não encaram a questão como batalha, mas como campanha de conscientização social. Se fosse só pelo crédito, seria tão fútil e mesquinha quanto a campanha de descrédito ao GNU.

Porém, a confusão gerada pela suposição de que Linus deu origem a todo o sistema, desconsiderando toda a influência e todo o esforço levado a cabo pelo Movimento Software Livre e pelo projeto GNU, empresta legitimidade indevida à (não) ideologia de Linus, fazendo parecer que foi ela que deu origem ao sistema e fomentou seu sucesso. Mas é uma ideologia tão diferente da que deu origem à maior parte desse sistema, majoritariamente GNU, que aceitou até que Linux voltasse a ser não-Livre.

A confusão entre Linux e GNU+Linux se realimenta, pois o sucesso foi fomentado pela combinação, pela união dos apoiadores de ambas filosofias e muitos outros, não exclusivamente por uma ou outra. Ao negar o renome ao GNU e à sua filosofia, nega-se também, à maioria dos usuários do sistema GNU, credibilidade e exposição à filosofia que norteou a criação do sistema que Linus julgou essencial para que o Linux fosse utilizável desde o início de sua história.

Ao negar essa realidade, dificulta-se mediante engano a campanha de conscientização que embasa o movimento Software Livre. Certamente há quem tenha interesse, quase sempre mesquinho, em induzir a esse engano (mentira), em impedir a conscientização sobre os males do Software não-Livre (manipulação), em preservar essa injustiça à fonte da qual mamou (ingratidão).

Nada justifica negar a natureza predominantemente GNU da combinação de GNU, Linux et al, para afirmar somente sua porção Linux. Independentemente da ideologia, dar a entender que a combinação é mais Linux que GNU é uma mentira.

Farpas e Falácias

Ainda assim, inventam desculpas as mais estapafúrdias para tentar justificar o destaque exagerado ao Linux no nome da combinação, em detrimento do GNU. Em quase todos os casos, o argumento para negar o reconhecimento ao GNU justificaria com ainda mais força a exclusão da menção ao Linux, por isso se trata da falácia “dois pesos, duas medidas”. Se nenhum dos componentes menores que o GNU fosse mencionado, não haveria injustiça ao GNU em excluí-lo também.

Vale lembrar que referir-se ao Linux por seu próprio nome não é problema. Esse núcleo não é um programa GNU e ninguém está tentando obter crédito indevido por ele. O que se busca é apenas corrigir a injustiça que se instaurou ao se renomear a combinação de GNU, Linux et al a Linux.

Outras falácias, como a lógica circular (a confusão realimentada, logo acima) e o apelo às massas (“todos sempre fizemos assim”, no início), são também usadas para justificar o injusto e injustificável erro. Vá lá, errar é humano, mas aprender também. Assumir o erro, nem tanto, mas insistir no erro... há quem faça, com teimosia típica asinina.

Injustamente, a Humanidade é Desumana

Primatas pensantes, com aguçado senso de justiça, moral e ética e capacidade de aprender, não mais desmereceriam o bo(vi)níssimo GNU só porque “sempre fizeram assim” primatas tradicionalistas, equinos teimosos, canídeos infiéis, suínos chauvinistas, preguiças acomodados, outros ingratos mamíferos da fonte do GNU e até ab(ez)errações pinguíneas, né? NÉ?!


Copyright 2009 Alexandre Oliva

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