Vade Retro!

Alexandre Oliva

Quem acompanha minha coluna faz tempo, ou quem assiste às minhas palestras, talvez ainda lembre do netbook Lemote Yeeloong 2B sobre o qual escrevi há alguns anos. Até seis meses atrás, eu ainda usava esses netbooks chineses com processador MIPS como ponto principal de acesso à rede. Mas os que eu tinha envelheceram e o hardware começou a me dar sustos, então me pus em busca de alternativas.

É claro que eu não queria retroceder na questão da liberdade de software, e como o Yeeloong funcionava 100% com Software 100% Livre, de vídeo e WiFi até o seu equivalente de BIOS, as opções não eram muitas. As versões mais novas do Yeeloong exigem blobs pro vídeo da ATI/AMD funcionar, então não cheguei a me interessar.

Eu já sabia que Thinkpads antigos, modelo x60, podiam ter a BIOS privativa de liberdade substituída pelo Libreboot, uma distribuição 100% Livre do Coreboot, e que essa substituição permitiria a substituição do WiFi privativo da Intel por um Livre. A BIOS original priva quem se crê dono do equipamento até dessa liberdade.

O problema é que trocar uma máquina de 8 anos de idade por outra mais ou menos da mesma geração não ia refrescar muito em termos de recursos do hardware. Foi lá pelo fim do ano passado que fiquei sabendo que o Libreboot já estava funcionando também em Laptops Thinkpad x200, um bocado mais recentes que o x60. O caminho estava claro!

Achei na Internet um x200 usado com configuração razoável e preço compatível, mas como não sabia quanto ia demorar pra conseguir instalar o Librebot nele, e como estava perto do Natal, acabei também me dando de presente também um x60, mais limitado, mas que eu poderia começar a usar imediatamente.

Instalar a BIOS Livre no x60 mostrou-se bastante fácil: o processo é todo em software, e, apesar de a BIOS ter algumas medidas de proteção, elas parecem pretender apenas evitar acidentes. Não chegam a ser um impedimento para alguém determinado a seguir as instruções de instalação do Libreboot e exorcizar os demônios que possuem as camadas mais profundas da mente da máquina.

Já o x200 não é tão tranquilo: precisa de um computadorzinho-cartão BeagleBone ou similar com interface SPI para contornar o bloqueio da BIOS, precisa abrir a máquina e conectar o BeagleBone e uma fonte externa ao chip de memória flash que contém a BIOS usando uma pinça-clipe SOIC-8 ou SOIC-16 e jumper cables.

Achei um BeagleBone usado na Internet, fonte ATX sobressalente eu já tinha, a pinça-clipe eu achei no Brasil, mas os cabinhos para conectar tudo, nos tamanhos recomendados, tive de mandar vir da China, junto com uma pinça-clipe adequada para o chip de memória flash do meu x200, uma vez que descobri que a que eu tinha comprado no Brasil não ia servir.

As pinças chegaram logo (o mantenedor do libreboot falou que elas quebravam com facilidade, então já comprei várias, por muito menos que o preço de uma aqui), mas os cabos demoraram meses. Chegaram poucos dias antes do EXPOTEC, em João Pessoa, para onde estou me dirigindo enquanto escrevo este relato.

Com o kit completo, chegou a hora de colocar o x200 em ação! O BeagleBone já estava com tudo pronto, exceto pela nova versão do Libreboot, publicada naquela semana, que baixei nele num instante. Localizei novamente a documentação do Libreboot com o procedimento de instalação no x200, o manual do BeagleBone com a numeração dos pinos, conectei os jumper cables nos lugares corretos (a documentação do Libreboot tem até foto, pra não ter erro), abri o x200, localizei o chip, confirmei que o clipe se encaixava ali com perfeição, e fui conectar os cabos ao clipe. Foi aí que o primeiro demônio atacou: eu havia comprado clipes diferentes dos recomendados, e nesses clipes diferentes, os conectores eram próximos demais para os conectores dos cabos que comprei. Tentei forçar a barra e fazer os contatos necessários, mas... não funcionou.

Foi entre uma tentativa e outra que o segundo demônio mordeu: fui mover o x60 um pouco pro lado, mas com a tensão de não estar conseguindo exorcizar a BIOS privativa do x200, segurei-o pela tela e com força suficiente para produzir um creque. Oh, não! Religando a tela de cristal líquido, confirmou-se o que eu temia: em vez de conseguir libertar o x200, consegui estragar o x60.

E agora, que máquina levar pra João Pessoa? Levo o x60, Livre e funcionando o suficiente para projetar minha apresentação, mas não para ler emails? Levo o x200, mesmo sem a BIOS Livre? Tento achar quem conserte o x60 de um dia para o outro, a tempo de eu viajar? Atualizo o Yeeloong para a nova versão do gnewsense que saiu para ele, e torço para que essa nova versão não estranhe tanto os arquivos de configuração de navegador, leitor de email, programas de chat, já que a versão antiga não mais servia para nada disso depois que eu migrei pro x60?

A quebra da tela foi no sábado. No domingo, tentei atualizar o gnewsense, mas depois de muitas horas baixando os pacotes, encontrei tantos erros de dependências e estava tão cansado que desisti. Confesso que passei parte da segunda-feira muito tentado a fazer vista grossa à BIOS privativa do x200, já que nada mais parecia ser viável e eu já viajava na terça.

Era tão tentador porque a bateria nova do x200, que também chegou naquela semana, duraria muitas horas, enquanto as 3 baterias que tenho pro Yeeloong duram cerca de 90 minutos cada. Porque já me acostumei com o teclado e com o software, igual ao do x60. Porque parecia não haver outro jeito, e ninguém mais ia saber que eu estava usando um computador com BIOS privativa!

Mas como eu ia me sentir frente à minha consciência dando passos para trás em termos de liberdade de software? "Vade retro" é pra satanás, não pra nós! E como eu ia poder falar com propriedade a respeito, se eu mesmo houvesse privilegiado conveniência ao invés da liberdade? Não, o caminho não era por aí. Não podia ser por aí!

Até encontrei quem trocasse a tela do x60 na hora, na cidade onde moro, e por um preço não absurdo, mas quando tive confirmação, já havia decidido pelo meu bom e velho companheiro de tantos anos, o netbook Yeeloong no qual tantos outros artigos já escrevi e tantas viagens já fiz. Configurei com VNC o outro laptop, que ficou em casa ainda conectado ao monitor externo, para poder rodar remotamente as versões mais novas dos programas que já me acostumei a usar e que quebraram compatibilidade com as versões presentes no Yeeloong. E assim, nos momentos em que estou desconectado, uso o tempo para escrever este artigo!

Vá lá, foi um pequeno passo para trás em termos de hardware (viva o retrô!), mas que passo eu para a humanidade se faço diferente? Que bom exemplo, que boa mensagem teria eu para escrever neste artigo? Uma confissão de incoerência e hipocrisia? Um "até eu, Brutus?" Vade retro, Satanás! Deixa de tentar e atormentar esta mente Livre que não te pertence!

PS: O x60 acabou não sobrevivendo à operação de troca da tela e precisou ser aposentado e substituído por outro igual. Já o x200 superaqueceu, queimando a placa mãe antes que sua BIOS pudesse ser exorcizada; a placa foi trocada com sucesso, mas continuou possuída ainda por um bom tempo. A antiga está guardada, para ter sua BIOS reprogramada como último gesto de misericórdia. A luta continua!

PS2: O BeagleBone também morreu, depois de um cartão de memória quebrar dentro do leitor, e de eu quebrar o leitor tentando remover a metade que ficou presa lá dentro. O novo BeagleBone ainda não foi usado, mas no LibrePlanet 2016, o x200 finalmente teve a BIOS privativa exorcizada, e levei de volta pra casa clipes para fazer a liberação da placa mãe antiga e de outros computadores mais.

PS3: O BeagleBone Black e o clipe Pomona 5252 estrearam em 19 de junho de 2016, gravando a BIOS da placa mãe que tinha superaquecido. Ela pode finalmente descansar em paz, pois sua "alma" agora está livre.


A sociedade protetora dos computadores adverte: computadores foram danificados, alguns fatalmente, durante a elaboração deste artigo.


Copyright 2015, 2016 Alexandre Oliva

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