Ao Conselho Universitário
Universidade Estadual de Campinas

Venho por meio desta apoiar a moralização do uso dos recursos públicos, provenientes de impostos, evitando a privatização de bens públicos que ocorria impunemente antes da DELIBERAÇÃO CONSU-A-08 de 2009

O que é produzido com recursos públicos é bem público, e não deve ser privatizado sem que haja respaldo jurídico apoiado nos princípios constitucionais estabelecidos pela Constituição Federal e por leis federais e estaduais.


A missão da universidade, particularmente a universidade pública, é produzir e difundir conhecimento. A regra, como zela a boa ciência e o bom ensino, é publicar, difundir, permitir o livre uso do conhecimento gerado e reverberado. Não é missão da universidade pública buscar formas de monetizar ou controlar o uso do conhecimento ali gerado.


A resolução aprovada, embora moralize o aproveitamento particular indevido, falha ao dar espaço à privatização e abuso por parte da própria universidade. O conhecimento gerado é por natureza público, não devendo ser sujeitado, por exemplo, ao licenciamento de patentes. A própria obtenção de patentes bate de frente com a missão de difundir conhecimento para a sociedade.

Uma vez que a publicação da pesquisa já é contemplada pela missão de gerar e difundir conhecimento, restam às patentes exclusivamente o aspecto restritivo, privatizador, de freio ao progresso da ciência e da tecnologia, e o custo de registro e manutenção de direitos de exclusividade sobre técnicas que deveriam, por sua origem, ser públicas.

É vergonhoso sequer sugerir, como faz a resolução aprovada, que licenciamento exclusivo de tecnologia desenvolvida na administração pública, direta ou indireta, possa servir melhor à sociedade que a ausência de restrições à própria sociedade que institui e sustenta a universidade e o poder público em geral.


A resolução também se posiciona contra a boa prática científica na medida em que sujeita a termos diferentes a publicação de artigos científicos e do software desenvolvido e utilizado para derivar resultados publicados de dados coletados ou previstos. A boa prática científica envolve a possibilidade de duplicar resultados de pesquisa, algo impossível ou bastante dificultado quando há impedimento à divulgação da forma como se chega da teoria aos resultados, frequentemente implementada em software. Cada vez mais cientistas têm adotado a prática de publicar não apenas o artigo, mas também fornecer os dados coletados e os programas de computador relacionados. A resolução induz pesquisadores a atrasar publicações para buscar aprovação, ou a publicar sem seguir as melhores práticas atuais. É uma posição bastante infeliz.


Ainda em relação às publicações, é bastante infeliz, e de legalidade discutível, a decisão de pré-autorizar pesquisadores a privatizar as publicações científicas produzidas durante o exercício de suas atividades remuneradas pelo poder público, ou utilizando recursos públicos.

Embora seja prática corrente de inúmeros meios de publicação científica exigir a transferência de direitos autorais e publicar as obras científicas de forma restrita, aceitar essa prática vai contra a missão da universidade pública, de tornar o conhecimento gerado acessível a todos.

Parece-me mais compatível com a missão da universidade pública manter sob controle público os direitos sobre as obras autorais desenvolvidas em atividade acadêmica em nome da universidade, e fazer da publicação restrita a exceção que exija autorização especial, ao invés de prática pré-autorizada pela regra.

Esforço conjunto e coordenado, por parte das diversas universidades públicas e órgãos públicos de fomento, pode restaurar a boa prática científica de ampla divulgação das obras que descrevem avanços científicos, ao invés de limitar seu alcance aos privilegiados que tenham acesso às caríssimas publicações de distribuição restrita.


Quanto ao software, cabe primeiramente questionar a autoridade da universidade para auto-nomear-se titular dos direitos autorais de obras compostas por alunos e pesquisadores sem contrato de prestação de serviços para a universidade. Não encontra qualquer respaldo legal para tal determinação: dela só podem resultar expectativas distorcidas e futuros contratempos quando porventura haja demanda por seu cumprimento, por quem desconheça os limites legais da decisão sobre quem conheça seus direitos. Melhor evitar de ante-mão o conflito, sem criar uma falsa atmosfera de preocupação e medo que dificulte a alunos e pesquisadores bolsistas obterem posições de estágio, emprego ou mesmo as atividades de empresas juniores, e sem impor contratempos à participação em atividades de desenvolvimento colaborativo de Software Livre.

A Unicamp é reconhecida mundialmente pela quantidade e pelo alto nível de suas participações em programas internacionais como Google Summer of Code, e eu mesmo, durante minha graduação e pós-graduação, contribuí para inúmeros projetos de Software Livre e participei de concursos de programação nacionais e internacionais. Exigir a prévia autorização da universidade para participar dessas atividades, como faz a resolução em vigor, ao invés de promover a função social da universidade e encorajar as boas práticas acadêmicas e sociais por parte dos alunos, tenderá a limitar a participação de alunos em atividades relacionadas ao desenvolvimento de software, trazendo consequências negativas ao reconhecimento nacional e internacional da Universidade.

Direitos autorais sobre software, assim como sobre as demais formas de expressão autorais, quando desenvolvidos com recursos públicos, devem ser bens públicos, e tratados como tal. Não deve a universidade, sem respaldo legal, permitir sua privatização.

No caso particular do software, cabe citar que iniciativas de publicação desse tipo de obra literária, por parte do poder público, encontraram dificuldades junto a órgãos de fiscalização no Rio Grande do Sul, no início da década. Desde então, o governo federal investigou a legislação e as formas de licenciamento disponíveis.

Conforme estudo conduzido pela Fundação Getúlio Vargas, a forma mais recomendável para publicação e licenciamento de obras públicas do tipo software é através de licenças de Software Livre com a característica de copyleft, recomendação essa levada a cabo pelo Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, que encomendou o estudo, e mais recentemente pelo Ministério do Planejamento e inúmeros outros órgãos da administração pública indireta e direta, federal, estadual e municipal, através do Portal do Software Público Brasileiro. A prática foi avaliada e aprovada pelo Tribunal de Contas da União.

A recomendação propõe licenças de Software Livre, que respeitam o caráter público das obras, com a característica adicional do copyleft, que evita a privatização de obras derivadas, providenciando para que o resultado do investimento público permaneça público. Em particular, a recomendação centraliza sua recomendação na licença CC-GNU-GPL-BR, em função de exigências do uso do vernáculo em contratos e documentos públicos, ou em versões juramentadas, e da existência de tradução juramentada dessa licença.

Por analogia, é possível supor e recomendar que outros tipos de obras autorais, literárias e talvez não-literárias, devam seguir os mesmos princípios de evitar a privatização de obras derivadas, sendo portanto natural sugerir, para obras em que “código fonte” não seja indispensável para a criação de obras derivadas, a recomendação de licenças Share-alike da iniciativa internacional Creative Commons, que contam também com traduções e adaptações à legislação nacional graças à participação ativa da mesma Fundação Getúlio Vargas.


O uso de licenças share-alike ou copyleft contempla obras desenvolvidas integralmente dentro da esfera da administração pública. Outro aspecto importante a ser contemplado é a participação de professsores, funcionários, prestadores de serviços, pesquisadores e alunos em projetos colaborativos, tanto de software quanto de outras obras autorais (ex: artigos da Wikipedia), que utilizem termos de licenciamento diferentes dos recomendados para obras criadas integral e exclusivamente com recursos da universidade.

Conviria pré-autorizar a participação em tais atividades, mesmo sob termos de licenciamento diferentes, desde que estejam de acordo com a missão de gerar e difundir conhecimento público, talvez sujeitando tal pré-autorização a que as contribuições não superem uma pré-determinada fração da obra completa (1/3 ou 50%), exigindo consultas formais caso as contribuições superem tal fração.


Vale ainda ressaltar que a adoção de práticas pré-autorizadas de licenciamento e participação em projetos não exclui a possibilidade de licenciamento, sob outros termos, de obras sob titularidade exclusiva da universidade, mediante consulta formal e deliberação com base nas atribuições da universidade e no ordenamento jurídico vigente.


Espero que minhas sugestões possam ser úteis nas discussões a respeito de revisão dessa deliberação.

Sem mais, subscrevo-me,


Alexandre Oliva