Responda rápido: o que é, o que é, que permite fazer ligações, mandar mensagens e navegar na Internet, além de ter câmera digital, calculadora, jogos, bateria de longa duração, tela colorida de alta resolução, áudio polifônico e é do tamanhinho de um brinquedo de criança? As aparências enganam...

Deu no Estadão: "Estudo sugere que 'um laptop por aluno' prejudica aprendizado". Será?

A referência da manchete ao projeto OLPC, One Laptop Per Child (Um Laptop por Criança), e ao projeto educacional brasileiro que considera adotá-lo, Um Computador por Aluno, dificilmente poderia ter sido mais clara. Mas que o estudo da Unicamp tem a ver com eles? À primeira vista, muito, mas vamos ver até que ponto o estudo foi, digamos, imprensado pela matéria dita jornalística.

Alô? Aurélio? Tudo bom aí em cima? Aqui, tudo jóia. Viu?, por aqui tem um uso do verbo imprensar que você pode querer colocar na próxima edição, algo a ver com distorção por parte da imprensa. Não pode? Como assim, só se um concorrente do OLPC no Brasil deixar?

O estudo avalia diversas centenas de artigos científicos nacionais e estrangeiros a respeito dos resultados do uso de computadores em salas de aula e tarefas de casa, no ensino de nível fundamental e médio, ao longo de 4 décadas, assim como resultados de correlação entre desempenho de alunos e freqüência de uso de computadores para tarefas escolares em estabelecimentos de ensino brasileiros. Entre suas constatações, ressalto:

Os resultados da nossa análise da bibliografia internacional parecem indicar que as evidências em favor da hipótese de que computadores são benéficos para o desempenho escolar fundamental e médio são pouco convincentes e provavelmente não muito significantes. Isso parece contrastar fortemente com a crença da maioria das pessoas.

Quer dizer, estudos de caso sobre uso de computadores em sala de aula ou em tarefas de casa, ao longo das últimas décadas, em artigos publicados até novembro de 2005 (portanto bem antes do lançamento do OLPC), sugerem alguma melhora no desempenho escolar, mas não convencem.

Nos Estados Unidos há, desde os anos de 1970, uma preocupação limitada, mas presente na análise dos impactos do uso de computadores na educação. É possível que o resultado dessas análises tenha levado os professores, os desenvolvedores de software, os administradores a adquirir uma maior compreensão de como empregar estas tecnologias e maior clareza a respeito dos objetivos desejados.

O acúmulo de experiência ao longo de 4 décadas colocou os EUA numa posição vantajosa de conhecimento a respeito do uso de computadores na educação: tanto professores quanto desenvolvedores de software sabem melhor como utilizar essas tecnologias para benefício da educação, ainda que não tenham sido capazes de alcançar melhoras convincentes durante o período do estudo.

Em contraste, no Brasil é simplesmente impossível dizer com confiança o que está acontecendo, e isso é pernicioso tanto para o desenvolvimento de políticas educacionais quanto para o desenvolvimento da ciência.

Sobre nós, praticamente nada se pode afirmar.

Uma análise dos resultados da pesquisa demonstra que, independente da classe social, onde existem diferenças significativas, usar o computador raramente é, em quase todos os casos, associado a melhores resultados de [sic] não usar. Esta descoberta leva diretamente à hipótese de que é necessário promover o uso leve de computadores para melhorar o desempenho escolar. Isto, sobretudo, porque a ausência de uso é associada a piores resultados do que o uso leve.

Num país onde a imensa maioria dos alunos sequer tem acesso a computador, isso é absolutamente contraditório com a manchete, que faz parecer que o estudo recomenda a não adoção de computadores.

aqueles que sempre usam o computador têm pior desempenho que outros usuários da mesma classe social. Para os mais pobres, o resultado é mais nítido ainda.

Uso excessivo prejudica o aprendizado. Por quê?

qualquer hipótese explicativa será necessariamente especulativa. A bibliografia sobre o 'paradoxo da produtividade' sugere uma hipótese: usuários mais pesados se dedicam aos estudos durante menos tempo e com menos afinco do que seus colegas, como [sic] padrões de menor tempo de uso.

Há um outro curioso paradoxo: se os alunos fazem uso mais freqüente do computador para fazer suas tarefas, como se pode afirmar que dedicam menos tempo aos estudos? Estão fazendo as tarefas, ou não?

Ouso apresentar minhas "hipóteses explicativas, necessariamente especulativas", de que o tempo de uso mencionado na pesquisa não corresponde ao tempo de uso para fins educacionais. Especulo ainda que isso ocorre por algumas possíveis razões: (i) uso do computador para outras atividades absolutamente não relacionadas aos estudos; (ii) desperdício de tempo aprimorando ou enfeitando trabalhos de maneira exagerada, de forma que não contribuam para o aprendizado; (iii) desperdício de tempo enfrentando as dificuldades inerentes ao uso do software não necessariamente adequado aos propósitos educacionais. Em todos esses casos, está havendo de fato desperdício de tempo que poderia ser dedicado à educação. Nesse caso, não há "paradoxo da produtividade", apenas mau uso do equipamento disponível.

É inegável que os sistemas operacionais de uso cotidiano oferecem (impõem?) inúmeras distrações para os usuários: um sem número de avisos e lembretes que tiram a atenção de tarefas importantes, uma quantidade praticamente infinita de possibilidades de enfeitar documentos e apresentações, e um sem-número de problemas de incompatibilidade, instabilidade e erros que levam à perda de dados e de tempo.

Some-se a isso o visual das aplicações que alunos, presume-se, utilizam para suas tarefas de casa, guiado muito mais pelas necessidades do grande mercado corporativo que pelas dos usuários educacionais. A seriedade exigida pelos ambientes corporativos pouco fazem para tornar o uso dessas aplicações agradáveis às crianças, ainda que os fatores de distração amenizem o desânimo infantil. Leve-se em conta ainda a importância mercadológica de construir novas versões que respeitem as "intuições" acumuladas por usuários ao longo de décadas de evolução de interfaces homem-computador, desde os tempos imemoriais anteriores à introdução de janelas e roedores nos então chamados CPDs.

Considerando o quanto se investe em adestramento de novos usuários para uso dessas ferramentas, fica claro o quão pouco intuitivo de fato esse mundo se tornou, apesar dos protestos daqueles que já internalizaram suas idiossincrasias. Para crianças e outros novos usuários, sem a bagagem que carregamos sem já nem perceber, essa suposta intuitividade é contraproducente: torna-se mais um fator de desmotivação, ao mesmo tempo em que aprisiona o usuário e sua atenção com inúmeras outras distrações mais interessantes. Daí o paradoxo da produtividade.

Como, então, escapar dele, oferecendo aos alunos ferramentas que lhes ajudem a aprender mais, mas que não os distraiam ou os obriguem a perder tempo brigando com as ferramentas projetadas para outros casos de uso? Como oferecer aos alunos a oportunidade do uso leve de computadores, recomendado como fator para aumento do desempenho escolar, pelo que prefiro chamá-lo uso útil, sem descambar para o uso excessivo, carregado de uso inútil, que prejudica esse desempenho?

Fica claro pelo estudo que, mesmo no país com maior experiência no assunto, o modelo vigente de computação traz benefícios poucos e duvidosos à educação. Certamente, uma mera redução no tamanho e preço dos computadores, para torná-los acessíveis a mais crianças, não vai trazer benefícios maiores ou mais certos.

Por outro lado, negar aos alunos a oportunidade de fazer uso útil de computadores, em função do risco de que venham a fazer uso excessivo, seria também uma medida prejudicial.

Diante de um falso dilema entre duas opções indesejáveis, surge uma terceira possibilidade que, justamente por ser revolucionária, apresenta uma grande possibilidade de prover e potencializar os benefícios do uso de ferramentas eletrônicas de ensino, sem porém potencializar os riscos do uso inútil. Como? Revolução é quebra de paradigma. A começar pelas aparências.

A pergunta do primeiro parágrafo induz a pensar num telefone celular moderno, porém todas as características se aplicam também ao X0, o primeiro modelo de "equipamento salva-vidas educacional" da Fundação OLPC. A idéia da pergunta era lembrar que um celular, assim como inúmeros outros equipamentos eletrônicos hoje em dia, são computadores disfarçados, projetados com componentes de propósito geral, mas empacotados e programados de forma adequada para desempenhar determinadas funções, às vezes a ponto de se tornarem irreconhecíveis como computadores. É importante não se deixar enganar pela aparência, nem pelo fato de se tratar de um computador de propósito geral, disfarçado ou não: para otimizar os resultados, faz-se necessário adaptar o computador aos objetivos que ele pretende servir, tanto no aspecto do software quanto do hardware.

Considerando que o objetivo é educação, formação de seres pensantes, satisfação da sede e incentivo à busca de conhecimento e comunicação, para evitar que prevaleça o engessamento de alguns métodos de ensino ultrapassados mas ainda em voga, e considerando ainda que não há obrigação ou benefício de compatibilidade com as amarras do passado, permitiu-se a exploração de diversas alternativas, expostas a seguir.

Ao invés de usar um computador convencional em tamanho reduzido, oferecer aos alunos um equipamento salva-vidas, um brinquedo de aprender a pensar, que, como tantos brinquedos hoje em dia, carrega componentes, oferece funcionalidades e até se parece com um computador.

Ao invés de um sistema operacional de uso geral, com todas as suas distrações e idiossincrasias, e uma ou outra aplicação educacional específica, um com aparência completamente nova que rompe com a inércia da compatibilidade vestigial, projetado por especialistas em educação infantil para ser agradável e intuitivo para seu público alvo, as crianças, a fim de lhes permitir se concentrar em cada tarefa sem distrações inoportunas, assim como descobrir sozinhas como usar cada uma das inúmeras ferramentas de desenvolvimento de raciocínio disponíveis. Tudo isso projetado por estudiosos do assunto no país mais avançado no tema, segundo o estudo publicado, e que, ao invés de cultivarem um limitante ufanismo patriótico, buscaram referências de modelos educacionais em todo o mundo, inclusive no Brasil.

Ao invés de uma rede sem fio presa à infraestrutura da escola, uma rede Mesh, em que cada equipamento salva-vidas estica o alcance da rede até seus vizinhos, mesmo quando desligado, permitindo aos alunos fazer pesquisas e preparar trabalhos escolares, individuais ou em grupo, na escola ou cada um em sua casa, inclusive com compartilhamento atividades e outras ferramentas de comunicação.

Ao invés de uma tela convencional, ainda que em tamanho reduzido, uma tela de resolução e contraste mais altos que os de impressoras de livros didáticos, com inovadora tecnologia reflexiva que permite leitura agradável, com baixíssimo consumo de energia, inclusive sob forte luz solar, tanto em ambientes externos quanto próximo a janelas de salas de aula. Para facilitar a leitura, a tela ainda se vira e deixa o salva-vidas educacional com formato de livro.

Ao invés de o aluno levar, de casa para escola e da escola pra casa, quilos de livros impressos em material frágil, anti-ecológico e de curta vida útil, copiam-se os livros em formato digital para o computador, economizando os custos de impressão e distribuição e preservando as árvores que teriam de ser derrubadas para fabricar tanto papel.

Ao invés dos riscos de acidentes, roubo e violência para os alunos durante o transporte de um computador comum, um salva-vidas eletrônico extremamente robusto e de fácil reparo, com sistema anti-furto e recursos computacionais suficientes para atividades educacionais, porém insuficientes para as inúmeras distrações dos sistemas operacionais de propósito geral, reduzindo ainda mais a probabilidade de furto.

Ao invés de uma bateria pesada, de vida útil curta, cara, difícil de substituir, e repleta de componentes explosivos, incendiários e altamente tóxicos, uma bateria leve, de vida útil de vários anos, barata, fácil de trocar até pelas próprias crianças, e sem riscos de explosão ou poluição.

Ao invés de um consumo de energia que praticamente exige a ligação permanente à rede elétrica, um consumo quase uma ordem de magnitude menor, alcançado mediante avanços de gerenciamento e redução de consumo de energia dos componentes eletrônicos, do sistema operacional, da tela, da rede e da própria capacidade da bateria, viabilizando o uso do computador sem custosas reformas elétricas das salas de aula, e até mesmo seu uso em regiões sem rede elétrica confiável, através de carga de baterias através de luz solar, energia mecânica animal ou mesmo humana.

Ao invés de uma violenta reação comercial para preservar o status quo, por parte daqueles que dele se beneficiam, e que não hesitam em confundir a opinião pública por meio da imprensa, até a ponto de fazer parecer que a repetição do encaixe de peças constitui um avanço para a indústria nacional, um esforço sem fins lucrativos que busca oferecer às crianças de países em desenvolvimento oportunidades de educação, pesquisa e comunicação semelhantes às disponíveis nos países desenvolvidos.

Ao invés da preservação do modelo de dependência tecnológica e colonização cultural, um compartilhamento do que se criou de melhor em educação em todo o mundo, tanto no hardware quanto no software. Embora a quebra da dependência tecnológica de fabrico de hardware seja um sonho ainda distante, já que o mundo inteiro tem dado preferência à fabricação e montagem desses componentes nuns poucos países da Ásia, a independência tecnológica com relação ao software já é uma realidade através do OLPC.

Ao invés de uma máquina projetada para executar o sistema operacional dominante e monopolista, mas que, como qualquer computador convencional, pode executar vários outros, uma máquina projetada para executar um sistema operacional educacional, mas que pode executar outros, com maior ou menor dificuldade dependendo do desperdício de recursos e da flexibilidade de cada sistema operacional.

Ao invés do engessamento do sistema operacional e softwares educacionais recomendados, à exceção das possibilidades de substituição completa e adição de componentes, um conjunto que pode ser inteiramente estudado pelos que tenham interesse, em que cada componente pode ser traduzido e adaptado às necessidades de cada população e indivíduo, bem como ser copiado, melhorado cooperativamente ou em esforços individuais, e usado por quem queira, inclusive em computadores convencionais, sem dever nada a ninguém, sem depender de ninguém: todas as aplicações e o sistema operacional GNU/Linux que fazem parte desse conjunto são Software Livre.

Ao invés de fazer suposições apressadas (impRensadas?) de que os mesmos resultados desanimadores seriam alcançados com uma máquina tão revolucionária, não seria de se imaginar que o salto de paradigma que sobreveio somente depois da coleta de todos os dados utilizados no estudo exigiria ao menos novos estudos para chegar a conclusões científicas?

Ao invés de uma máquina que preserva o status quo e leva aos mesmos resultados indesejáveis apontados pelo estudo, podemos hoje escolher um salva-vidas revolucionário que, por ter norteado cada decisão de projeto pelo objetivo de educar, de libertar o pensamento e a comunicação, tem grandes chances de não só oferecer os benefícios do uso útil já verificados cientificamente, como ainda superá-los com folga.

Ao invés de se deixar enganar pelas aparências, de julgar um livro (ou um dispositivo salva-vidas) pela capa, julgue e condene a matéria pela manchete imprensada entre compromisso jornalístico e interesses inconfessáveis.

Até blogo...