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Sexo, Drogas e Software

Alexandre Oliva <lxoliva@fsfla.org>

Publicado na trigésima-oitava edição, de setembro de 2012 (edição especial do 2º Fórum), da Revista Espírito Livre.

Tem gente que não viu a palestra, mas acha que eu exagerei ao comparar sacanagens envolvendo sexo, drogas e software. Quem ouviu o argumento parece não ter visto exagero, mas se houvesse algum, em minha defesa eu diria que não fui eu quem comparou, apenas desenvolvi citações de lumiares como Linus Torvalds e Richard Stallman.

Quem disse “Software é como sexo, é melhor quando é livre!” foi Linus, antes de ele ajudar a formar a dissidência do nosso movimento que prefere não falar das questões éticas e políticas que fundamentam a ideologia, antes de ele ganhar um prêmio da Free Software Foundation por sua contribuição à comunidade ao desenvolver e liberar o núcleo Linux e certamente antes de ele tornar o Linux novamente privativo.

De fato, sexo é uma das melhores coisas que se pode fazer no escuro entre quatro paredes, além de dormir e desenvolver Software Livre, claro. A dita sacanagem é prazerosa para todas e todos os envolvidos, pelo menos quando a relação é consensual, isto é, quando não há imposição ou subjugo. Agora, se alguém que não está a fim acaba forçada ou forçado a fazer o que não quer, a sacanagem é outra: não é legal, é estupro.

Quando o desenvolvedor de um programa privativo resolve enfiar uma funcionalidade indesejada no programa, impondo seus desejos maliciosos e mesquinhos e recusando-se a dar ouvidos à outra parte que diz que assim não quer, também é sacanagem, mas do segundo tipo. Claro que os danos causados são de diferentes magnitudes, mas a perversidade por trás é semelhante.

O que mais me surpreende é que tanta gente se submeta a essa prostituição reversa, pagando caro (em dinheiro e/ou liberdade) para que lhe façam sacanagem. Excluindo práticas masoquistas, a única hipótese que me ocorre para explicar essa submissão é a de que os usuários que aceitam esse abuso não compreendem sua real dimensão. Provavelmente nunca pensaram no assunto, nem receberam orientação e educação a respeito. Inocentes, vulneráveis, aceitam o abuso sem questionar, como vítimas de pedofilia que não conhecem realidade menos desagradável.

Já comparar software privativo a narcóticos não foi exclusividade de Richard Stallman (“software privativo é uma droga”). O nosso Sergio Amadeu também comparou a estratégia da primeira grátis dos traficantes de drogas com a dos fornecedores de software privativo que fornecem licenças para uso educacional sem custo (nem para a escola nem para o traficante) de forma a tornar os alunos dependentes de seus produtos.

É uma dependência que fica para toda a vida, exceto para quem for suficientemente determinado para enfrentar os sintomas da abstinência: é uma baita dor de cabeça abandonar velhos hábitos e arquivos codificados em formatos secretos. Nem sempre a vontade de curar a impotência, tão desesperadoramente perceptível quando o sistema resolve não subir mais, é suficiente para alguém conseguir abandonar o vício. A quantidade de pessoas que diz que gostaria de parar de usar um certo programa privativo e passar a usar Software Livre, mas não consegue, pelas mais diversas razões, é sintoma claro de dependência e da dificuldade de curá-la.

Levando em conta a diferença de magnitude dos males causados, a comparação é perfeitamente válida! Não é só porque um mal é menor que deixa de ser um mal e que deva ser aceito. Enquanto sociedade democrática e humana, proibimos a exploração de vulnerabilidades alheias através do estupro, da pedofilia e do tráfico de drogas; por que então não proibir o tráfico de software privativo?

Impedir alguém de prejudicar o próximo não é violação de liberdade, porque ninguém tem direito nem liberdade de prejudicar o próximo; no máximo, tem poder (injusto e ilegítimo) para isso. Isso fica claro quando olhamos para leis de defesa do consumidor, que buscam evitar o abuso da parte mais fraca pela mais forte. Assim surgiram leis que garantem ao consumidor o direito da portabilidade de números de telefone, de planos de saúde e de previdência e de crédito, que permitem ao consumidor trocar os serviços de um prestador que não lhe atende bem por outro que ofereça melhores condições. Todo mundo concorda que essa liberdade do consumidor de trocar de prestador é não só uma coisa boa, como perfeitamente legítima para conter o excesso de poder dos prestadores de serviço. Por que não garantir o mesmo direito no que diz respeito ao software, que hoje controla tanto de nossa comunicação, nosso entretenimento, nossa vida?

Mas o que precisaria para garantir a portabilidade de software, isto é, que se possa trocar de prestador de serviço de software sem abandonar dados nem perder investimentos em treinamento? É preciso que o consumidor possa entregar ao novo prestador o código fonte do programa, de forma que o prestador possa estudá-lo e fazer alterações que o consumidor deseje, devolvendo o programa modificado para que o consumidor possa executar para o propósito desejado.

Não é coincidência que essas quatro necessidades, quando satisfeitas, qualifiquem o software como livre. São o mínimo necessário e suficiente para que o usuário tenha sua autonomia respeitada, não ficando controlado, subjugado, aprisionado nem à mercê de alguém! Então, vamos pressionar legisladores para aprovarem a portabilidade de software, não só para relações de consumo, mas para qualquer situação que envolva a oferta de software a terceiros, para que todo software seja livre, e portanto todo usuário de software tenha alguma chance de ser livre.

É, eu sei... Vai demorar... O lobby do outro lado vai ser forte, mesmo que a gente consiga que legisladores nos escutem. Mas enquanto não escutam, podemos começar a agir como se a lei já estivesse escrita e aprovada! Afinal, não é só porque é proibido que não vão aparecer vilões tentando oferece drogas ou tentar abusar de nossas crianças: precisamos conversar sobre isso e ensiná-las a dizerem não aos agressores e exploradores, para não se tornarem vítimas.

Vale lembrar que o exemplo é um ótimo professor! Agora que entendemos o abuso que vimos sofrendo, a dependência a que tentam nos convidar, podemos agir com sabedoria e evitar nos tornarmos vítimas. Basta estarmos atentos às ofertas de software que recebemos, para recusar e justificar quando não respeitem a nossa liberdade: o nosso direito à portabilidade. Quem quiser ter alguma chance de vender para qualquer um de nós vai se adequar, mesmo que não tenha o respeito ao cliente como princípio.

Quanto às dependências que já temos, o melhor a fazer é planejar um tratamento para gradualmente nos libertarmos dessas drogas, pois sacanagem assim ninguém merece!


Copyright 2012 Alexandre Oliva

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