Constituição do Brasil quer Software Livre no Governo $Id: editorial-pt.txt,v 1.1 2006/09/02 03:46:31 aoliva Exp $ O Estado brasileiro do Rio Grande do Sul foi um dos pioneiros em legislar pela adoção do Software Livre na administração pública, com a Lei número 11871 [LEI] aprovada em 19 de dezembro de 2002. A lei estabeleceu que a administração pública deveria usar preferencialmente "software que seja aberto, livre de restrições proprietárias para sua cessão, modificação e distribuição." A lei está sendo acusada na justiça de ser inconstitucional [INI], com o apoio de Amici Curiæ que historicamente estiveram do lado do software proprietário no Brasil [AC1], e a lei foi suspensa em uma corte federal apesar de a Advocacia Geral da União ter derrubado todos os argumentos [AGU]. A FSFLA está agora tentando se juntar ao caso como Amicus Curiæ também, com a ajuda de organizações já estabelecidas no Brasil, para corrigir alguns argumentos mal apresentados, como o que Software Livre significa, para apontar problemas reais na lei relacionados com sua definição de "software aberto" e para argumentar que a Constituição do Brasil já concede para o Software Livre, mesmo que implicitamente, a preferência da administração pública que a lei concede explicitamente. Uma vez que a maioria dos princípios constitucionais usados em nossos argumentos são basicamente princípios de senso comum para a administração pública, nós esperamos que eles estejam disponíveis em muitos outros sistemas legais, esta é a razão pela qual nós traduzimos o texto, em uma tentativa de alcançar uma audiência mais ampla. A lei ----- A lei define "software aberto" de acordo com as 4 liberdades da definição do Software Livre, exceto por um pequeno mas significante engano: ela diz que nenhuma restrição de qualquer tipo deve ser imposta ao exercício das liberdades. Isto infelizmente falha por não conceder a preferência à maioria do Software Livre existente, uma vez que mesmo as licenças mais liberais impõem restrições como manter as notas de direito autoral intactas, ou usar a mesma licença para a distribuição de trabalhos derivados. Contanto que as pessoas continuem a seguir o espírito da lei, concedendo a preferência mesmo onde a lei falha em fazê-lo, isto não deverá ser um grande problema. É importante apontar que há casos nos quais a lei permite Software não-Livre, com justificativas como as que o Software não-Livre tenha claras vantagens sobre os programas com os quais compete, levando a um melhor retorno de investimento para a administração pública; e quando o uso de Software Livre causa imcompatibilidades com outros programas usados pela administração. O ataque -------- Da forma que iniciou o processo, a lei está sendo acusada de inconstitucionalidade, no caso número 3059/03. Os argumentos apresentados na inicial [INI] são que leis estaduais não podem regular licitações públicas, pois tal controle é reservado à União; que a lei não respeita o princípio de isonomia (distribuição igualitária de direitos e privilégios) entre os licitantes; que a adoção de Software Livre infringe os princípios de eficiência e economicidade; e que tais leis só podem ser propostas pelo Poder Executivo, nunca pelo Legislativo. Mesmo com a alegação da Advocacia Geral da União de que todos os argumentos são falhos [AGU], uma liminar foi concedida pelo Supremo Tribunal Federal, no qual tais casos são tramitados, e a lei está atualmente suspensa. Enquanto isso, a ABES (Associação Brasileira de Empresas de Software) e a ASSESPRO (Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação, Software e Internet), as organizações por trás da maior parte das campanhas contra cópias não-autorizadas de software (pirataria [SPI]) no Brasil, e que têm lutado contra o Software Livre, assinaram uma petição [AC1] para serem aceitos como Amicus Curiæ para este caso. Seus argumentos contra a lei começam por apresentar o que eles enganosamente citam como diferenças fundamentais de natureza entre Software Livre e proprietário, dizendo que este "é destinado ao comércio, tem fontes fechados e é protegido por direito autoral", enquanto aquele tem "origens acadêmicas, fontes abertos e permite modificação, reprodução e livre distribuição,", assim confundindo duas dimensões ortogonais: proprietário x livre e comercial x não comercial, e confundindo as liberdades respeitadas por Software Livre com a mera disponibilidade de código fonte comunicada pelo termo praticamente sinônimo "Software de Código Fonte Aberto." Então eles argumentam sobre a falta de garantia do Software Livre, como se transações comerciais envolvendo Software Livre não impusessem requisitos legais idênticos àqueles envolvendo qualquer outro tipo de software, e muitas outras falácias contra Software Livre que tenho certeza de que já ouviram antes. Eles completam repetindo argumentos que dão suporte a 3 das 4 alegações da inicial. Nossa resposta -------------- FSFLA, com apoio de entidades já estabelecidas no Brasil, está trabalhando para dar entrada numa petição de Amicus Curiæ que visa restabelecer o equilíbrio. Para esse fim, escrevemos um artigo de posicionamento no qual argumentamos que a Constituição Brasileira já estabelece princípios que são mais que suficientes para garantir ao Software Livre buscada pela lei suspensa e que, se a lei tem falha, não é por causa dos argumentos apresentados por seus oponentes, mas porque sua definição de Software Livre tem um erro. Isso não a faz inconstitucional: só a torna inoperante, ainda que na prática ela ainda tenha alcançado seu objetivo declarado quando seu espírito tenha sido seguido. Nossos argumentos se baseiam nas quatro liberdades da definição do Software Livre: (#0) executar o software para qualquer propósito, (#1) estudá-lo e adaptá-lo às necessidades do usuário (exige código fonte), (#2) distribuir o software da forma que foi recebido e (#3) distribuir modificações feitas ao software (exige código fonte); e os seguintes princípios constitucionais: - soberania: defender os interesses do país e dos cidadãos sem ser submisso a interesses estrangeiros; - impessoalidade: ausência de favorecimento injustificado de indivíduos ou empresas em condições similares; - moralidade: não usar uma posição pública em benefício pessoal; - publicidade: primariamente transparência, habilitando a sociedade a exercer controle sobre o governo; - eficiência: fzer o melhor uso possível dos limitados recursos disponíveis; - economicidade: gastar somente quando o retorno esperado é razoável; Outros princípios econômicos declarados na Constituição também foram utilizados: a livre concorrência, a defesa do consumidor, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido a empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país. Os argumentos apresentados abaixo são uma versão extremamente resumida que supõe alguma familiaridade com os modelos de negócio de Software Livre. O artigo completo [FSF] entra em muito mais detalhe tanto em explicar os vários modelos de negócios de Software Livre, com esclarecimentos de algumas suposições incorretas comuns, como nos argumentos e como eles se relacionam com os princípios constitucionais. É fácil ver que a liberdade de usar o software, especialmente quando combinada coma liberdade de redistribuí-lo, contribui para a economicidade e a eficiência, no sentido de que ela permite que um único investimento beneficie toda a administração pública e até mesmo todos os cidadãos, e normalmente economiza o custo de licitações para licenciamento de software. Sem a liberdade para estudar e adaptar o software, a soberania está em risco, já que você não pode saber o que o programa faz, violando a transparência, e já que você não pode compartilhar com cidadãos o que os programas fazem, ou como a informação é tratada ou codificada. As liberdades para estudar e adaptar o programa e distribuí-lo com ou sem modificações, combinadas, também contribuem para a economicidade e a soberania, no sentido de que habilitam a administração pública a contratar terceiros para manter software que um fornecedor abandonou ou falhou em manter satisfatoriamente. Isso, por sua vez, favorece a impessoalidade, já que de outra forma a escolha por uma plataforma de software favoreceria seu fornecedor por tanto tempo quanto ela permanecesse em uso (a razão pela qual a moralidade é freqüentemente tentada no momento dessas escolhas), e a livre concorrência, já que abre espaço para competição por serviços que de outra forma somente o fornecedor original poderia oferecer. Isso pode ser usado para favorecer pequenas empresas locais, o que aumenta o emprego, e para reduzir desigualdades, já que Software Livre torna monopólios mais difíceis de estabelecer. Garantias que têm de ser oferecidas a consumidores pela lei brasileira também se aplicam a transações envolvendo software, mas garantias sobre software proprietário normalmente cobre apenas o suporte físico (a mídia); fornecedores de Software Livre, enquanto oferecem serviços de software, têm portanto de oferecer garantias reais, melhorando a defesa do consumidor. Conclusão --------- Como ainda não estamos estabelecidos legalmente no Brasil, dependemos de terceiros para serem nosso representantes como Amicus Curiæ. Esperamos que o tribunal venha a aceitar a petição, se dermos entrada em tempo, de modo que nosso artigo possa ter chance de se contrapor aos conceitos errados apresentados na inicial e na primeira petição de Amicus Curiæ, e garantir que o termo Software Livre não seja para sempre comprometido no sistema legal brasileiro. Como explicado acima e em mais detalhe no artigo, não importa muito se a lei for mantida ou derrubada. Mesmo não vendo razões constitucionais para derrubá-la, gostaríamos que a definição da classe de software que ela privilegia fosse melhorada de modo que ela correspondesse ao espírito da lei, já apoiado em nossa Constituição. Ainda que entendamos que um processo como esse não seja o fórum apropriado para corrigir a lei, no artigo propomos uma definição alternativa que explica por que certas limitações às liberdades são aceitáveis, tais como as que garantem liberdades semelhantes a terceiros quando o software é redistribuído (copyleft), para garantir a preservação do crédito aos autores (não remover notas de direito autoral) e outras que possam servir a um propósito útil sem efetivamente limitar o exercício das liberdades (por exemplo, exigir a inclusão de uma certa sentença em material publicitário). Mesmo nos opondo à lei atual, por ser inoperante e criar confusão sobre o significado de Software Livre (mesmo que use um termo diferente), esperamos que a lei seja mantida e corrigida, de modo que nem todos tenham de se tornar especialistas em dinâmica do mercado de Software Livre para compreender por que as quatro liberdades são necessárias para cumprir com todos os princípios constitucionais mencionados acima. [LEI] Citada integralmente em [AGU]. [INI] http://www.kcp.com.br/diversos/adin_rs/inicial.pdf [AGU] http://www.kcp.com.br/diversos/adin_rs/AGU.pdf [SPI] http://www.gnu.org/philosophy/words-to-avoid.html [AC1] http://www.kcp.com.br/diversos/adin_rs/amicus-abes.pdf [FSF] http://www.fsfla.org/?q=pt/node/108