parlamento em busca do cale-se sagrado (lei dos cibercrimes)

Alexandre Oliva lxoliva en fsfla.org
Dom Jul 20 08:12:07 UTC 2008


] Pai, afasta de mim este cálice

Consta que, na Sexta-Feira Santa de 1973, os geniais Gil e Chico
adaptaram esse refrão para criticar o "cale-se!" da Censura então
vigente, provavelmente inspirados em palavras do grande mestre cristão
celebrado naquela data.  Nada mais justo que eu, mero mortal, faça
minhas as palavras dessa sapientíssima trindade para denunciar o risco
de nova censura, tanto virtual quanto real, embutido no projeto de lei
dos cibercrimes recentemente aprovado no senado.

[...]

* o texto não fala absolutamente nada sobre vincular a informação do
IP e do instante de conexão a um cliente específico do provedor.  Acho
que é por isso que os senadores são tão insistentes em dizer que isso
não vai invadir a privacidade de ninguém.  Se os provedores seguirem à
risca o que diz o projeto de lei, a informação não vai servir para
absolutamente nada.  Qual a utilidade de saber que *alguém* (sujeito
indeterminado) recebeu o IP 123.45.67.89 às 12:34 (UTC) do dia
11/11/11?  Até parece que quem escreveu o projeto não tinha a menor
idéia do que estava fazendo...

[...]

Não importa que os nobres senadores afirmem com veemência que a
intenção é criminalizar apenas as atividades de crackers que invadem
computadores.  A redação não corresponde à intenção, e quem perde é a
sociedade.

[...]

Um ponto importante a se levar em conta é que os termos "dispositivo
de comunicação" e "sistema informatizado" não significam o que seria
de se esperar.  Suas definições no artigo 16 são tão amplas que
qualquer coisa que carregue dados ou informação é dispositivo de
comunicação, inclusive CDs, DVDs, livros em papel, e até os sistemas
informatizados redundantemente listados no mesmo artigo.

[...]

Cabe perguntar que fim levarão os usos que não constituem infração de
direito autoral.  Se o titular decidir, na "expressa restrição de
acesso", condicionar o direito de leitura ou de cópia de pequenos
trechos a termos abusivos, que será das paródias, das críticas, das
citações, da nossa cultura?

Se esses titulares já estão tentando (sem muito sucesso, vale dizer)
fazer essas coisas com CDs, DVDs e livros eletrônicos, através de
medidas técnicas e jurídicas, por que não tentariam apertar mais um
pouquinho o torniquete em nossos pescoços, tornando crimes passíveis
de prisão tanto os atos já ilícitos cíveis quanto os usos ainda
permitidos por lei?

[...]

Agora imagine a possibilidade de parlamentares comprometidos com o
mensalão, e/ou que tenham recebido presentes de Daniel Dantas?  Se
informações a respeito dessas supostas transações caíssem nas mãos da
imprensa durante a vigência do projeto de lei, não teriam com que se
preocupar.  Qual jornalista se arriscaria a ir para a cadeia para
publicar essas informações, que certamente só poderiam ter sido
obtidas sem autorização dos legítimos titulares dos computadores em
que estavam armazenadas?

Sei que os nobres parlamentares têm preocupações legítimas, tais como
assegurar os lucros dos bancos que vêm publicamente promovendo a
aprovação desse projeto de lei, lucros estes reduzidos por fraudes
on-line pelas quais os bancos são (convenhamos, nem sempre justamente)
obrigados a ressarcir seus clientes.

A dúvida que fica é por que há tanta resistência dos nobres
paralamentares em manter a possibilidade de interpretações
alegadamente não pretendidas.  Qual o sentido de negar a possibilidade
evidente de outras interpretações plausíveis, que, mesmo que não
venham a ser acolhidas em tribunais, certamente serão usadas para
instaurar um regime de terror por quem busca cercear a divulgação de
dados, informações e obras de interesse público.  Ante a ameaça de
processo judicial e pena de prisão, quem ousará correr o risco de
perseguir seus direitos?  Perde a sociedade.

Será possível que os nobres parlamentares não têm noção de que o
projeto de lei falha em seus objetivos declarados mais fundamentais e
traz efeitos claramente indesejáveis para toda a população que
deveriam representar?

[...]

Rogo aos nobres deputados, portanto, que removam os artigos de redação
problemática (a saber, 2º, 13 e 22) no projeto de lei, antes de
enviá-lo para sanção presidencial, e, caso se mostre necessário
tipificar crimes adicionais, que seja dado início a novo projeto de
lei, prevendo debates públicos e buscando uma redação que não delegue
poderes de legislador e de polícia a entidades privadas, como fazem os
artigos citados, nem criminalize atividades não maliciosas e de
prática comum e claramente desejada pela sociedade.

http://fsfla.org/blogs/lxo/2008-07-19-parlamento-em-busca-do-cale-se-sagrado

-- 
Alexandre Oliva         http://www.lsd.ic.unicamp.br/~oliva/
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