Quis o destino que Quino nos deixasse no dia seguinte ao aniversário de sua mais famosa personagem. Que seu legado siga nos influenciando por muito tempo.

Mafalda, um ícone e patrimônio cultural da humanidade, traz em suas observações surpreendentes e críticas contundentes um tanto do espírito argentino de seu autor.

Mônica, de Maurício de Souza, tem no Brasil uma relevância cultural comparável. São ambas meninas, originalmente criadas para quadrinhos de diários, mas que transcenderam largamente seu contexto original.

Cada povo tem ícones que representam sua cultura, seu jeito de ser. Mafalda e Mônica eram nada parecidas, como talvez cantasse Renato Russo.

Enquanto o aguerrido povo argentino vai pra rua bater panela e fazer crítica política, como as que frequentemente fez Quino através de Mafalda, o brasileiro se deixa conduzir como gado e frequentemente maldiz a política e a relega a outros, enquanto quem ousa praticá-la é tido como malfeitor.

Consegue imaginar crítica política num balão de fala da Mônica? Não cabe, não é o propósito. Nem é que Maurício de Souza & Cia não tomem posições políticas. Várias personagens inclusivas introduzidas ao longo de décadas sugerem que as tomam, ainda que de forma muito mais sutil e muito menos frequente.

É certo que o pasto do hermano vecino é sempre mais verde, mas às vezes me dá uma invejinha boa deles. Enquanto lá se cria gado pastando solto nas pampas (e dá um churrasco delicioso), aqui a gente cria gado nas escolas e assiste impávido às colossais queimadas, à extinção da cultura e ao crescimento da monocultura. Fogo é agro. Veneno é agro. Dólar alto é agro. Gado é agro. Muuuu!

Quino, se por acaso houver reencarnação e você puder escolher, por favor volte brasileiro, ou o que o valha, se nos tornamos mesmo Porto Rico do Sul. É um tanto penoso, admito, mas aqui tem tanta caca que o terreno da crítica política fica fértil, mesmo com os recentes retrocessos à censura e à perseguição política. Não são privilégio nem exclusividade nossas, é verdade,, mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta, meu caro amigo, de novo.

Nesta terra, em se plantando, tudo dá: notícia falsa, convicção sem prova, prova plantada, fascismo... Mas também grandes pensadores e líderes da resistência. Precisamos de mais críticos como você deste lado da fronteira, para abrir olhos, resistir e inspirar outros mais, assim como sua existência argentina inspirou tantos de nós a nos tornarmos também inegavelmente culpados dos crimes de pensar, denunciar e resistir, como passou com sua confessa afilhada intelectual, a também genial [Laerte|https://mobile.twitter.com/LaerteCoutinho1/status/1311336392857878528/photo/1].

Por enquanto, descanse em paz, mestre.

Até blogo...