A equipe de imprensa do Latinoware me entrevistou algumas semanas antes do evento. Demorei uma barbaridade pra enviar as respostas, então não sei se chegaram a publicá-las. Assim sendo, publico-as aqui!

Quais novidades serão destaque na sua palestra este ano na Latinoware?

Tenho 3 palestrar programadas:

Numa, vou comemorar os recém-completados 30 anos do sistema operacional GNU, o primeiro e até hoje único sistema operacional desenvolvido com a finalidade específica de respeitar a liberdade que todo usuário de software merece. Muita gente hoje usa esse sistema, mas o conhece pelo nome Linux, que não só faz pouco caso como ainda nega esse respeito ao usuário. Vou falar de desafios superados e muitos outros ainda a superar.

Um desses desafios é justamente o Boot Restrito, uma técnica de restrição introduzida em computadores com Windows 8 que pretende impedir que o usuário troque o sistema operacional do computador que ele acredita ser seu, e com isso resgate o controle e a real propriedade sobre o equipamento e sobre as tarefas em que ele é utilizado. Esse vai ser o tema de outra palestra.

A terceira é justamente sobre a perseguição e demonização que hackers têm sofrido por ousarem enfrentar aqueles que pretendem controlar as sociedades modernas através das restrições de acesso a informações e controle sobre os meios de comunicação, como os computadores interconectados. Hackers, pessoas curiosas, amantes do aprender, do descobrir, do criar e do compartilhar, são confundidos com criminosos pelas classes dominantes; computadores têm deixado de ser programáveis pelos usuários para se tornarem meios de consumo e de comunicação mediada, controlada e espionada. Precisamos formar hackers para não só estudarem os códigos e protocolos que controlam os computadores, para recuperar a privacidade e o controle sobre nossos dispositivos e poder usar computadores para automatizar nossas próprias tarefas, para terem alguma chance de compreenderem os códigos e protocolos que controlam a sociedade, de modo a resgatar a democracia e a liberdade.

Como você avalia evolução do Software Livre nos últimos dez anos?

Nessa última década, o Software Livre se mostrou perfeitamente capaz de ocupar todos os espaços em que se utiliza software: dos pontos de venda e caixas eletrônicos aos servidores e workstations corporativos e científicos; dos servidores virtuais e reais da nuvens aos telefones e tablets, passando por roteadores de várias escalas no meio do caminho. Dificuldades, quando há, são resultado de hábitos arraigados e preguiça de aprender, ou de esforços artificiais, impostas por fornecedores monopolistas que introduzem incompatibilidades intencionais e restrições operacionais (como o Boot Restrito), fazendo com que tarefas corriqueiras com Software Livre pareçam difíceis.

Foram conquistados avanços técnicos, políticos e legais?

Avanços técnicos houve muitíssimos, demasiados para destacar algum, pois vejo os avanços que ocorrem no Software Livre muito mais evolucionários que revolucionários, justamente pelo fato de os avanços serem o resultado da colaboração e da soma de esforços de muitos atores.

Tivemos grandes avanços e grandes retrocessos na frente política; algumas mudanças de governos puseram a perder enormes avanços em direção à autonomia, à soberania e à autossuficiência; outras levaram a liberdade de software onde ela nunca esteve antes, ou resgataram esforços que haviam sido lamentavelmente abandonados. É preciso não só avançar na transparência e prestação de contas à sociedade, para evitar acordos escusos e corruptos com fornecedores de software privativo que só trazem dependência a governos e à população, como progredir na continuidade de esforços pela autonomia tecnológica.

Na frente legal, os grandes avanços que devo destacar são as derrotas que tentativas de introduzir patentes de software em diversos países, inclusive o Brasil, têm sofrido: patentes sobre ideias implementáveis em software são uma ameaça não só aos usuários e desenvolvedores de Software Livre, mas ao avanço tecnológico e ao livre mercado em geral, como têm comprovado os países que permitiram esse tipo de patente. É preciso continuar resistindo às tentativas de impor esse problema através de acordos bi- ou multilaterais de exploração comercial, que se têm negociado em segredo justamente por seu conteúdo brutalmente prejudicial e antidemocrático.

Houve um crescimento na demanda dentro do poder público? E no setor privado?

O crescimento da demanda foi enorme: empresas públicas e privadas não encontram mão de obra suficiente para contratar (o que valoriza que tenha bom conhecimento de Software Livre, tanto do uso como do desenvolvimento), a ponto de o Software Livre, antes irrelevante, ser atacado e combatido como ameaça real aos monopólios de diversas empresas de software privativo.

A participação de empresas públicas na expansão do uso do SL é importante?

Sem dúvida! O governo brasileiro responde pela maior parte do mercado de TI do Brasil. Quanto mais os governos deixarem de aceitar o subjugo de fornecedores de tecnologia privativa, maior espaço haverá para concorrências licitatórias para prestação de serviços não atrelados a um monopólio específico: num livre mercado em que o controle sobre a tecnologia não é artificialmente limitado, qualquer empresa pode adquirir a competência necessária para prestar um serviço necessário ao governo, criando um ciclo virtuoso de desenvolvimento econômico e tecnológico local e regional, aumentando a eficiência nas contratações de serviços de tecnologia.

Quais são as principais vantagens da utilização do Software Livre?

Em primeiro lugar, a liberdade de usar o software para qualquer propósito que você tenha em mente.

Em segundo, a liberdade de estudar como o programa funciona, de modo a se certificar de que ele se comporte como desejado, e de adaptá-lo, em caso contrário, ou mesmo se as necessidades mudarem.

Em terceiro, a liberdade de fazer e distribuir cópias do programa, evitando restrições arbitrárias de contratos de licença e possibilitando ajudar ao próximo bem como recorrer à ajuda (comercial ou voluntária) de terceiros.

Finalmente, a liberdade de melhorar o programa e distribuir essas melhorias, possibilitando a colaboração e a cooperação no desenvolvimento do software para que ele melhor atenda aos seus usuários, sem estarem sujeitos aos planos e conflitos de interesse dos planos de negócios de determinados fornecedores.

Essas são as liberdades que, juntas, estabelecem que um programa é Software Livre, pois tornam o usuário autônomo e livre. A falta de qualquer delas torna o usuário impotente e dependente de um fornecedor monopolista, pois todo software privativo cria um monopólio para futuras melhorias.

Como escreveu Richard Stallman, criador do Movimento Software Livre e lançador do projeto GNU, perguntar as vantagens do Software Livre é mais ou menos como perguntar as vantagens de não estar algemado.

A liberdade, uma vez perdida, será explorada por aquele que tenha causado essa privação para conquistar cada vez mais poder sobre a vítima.

Recentemente, foram divulgados alguns casos de espionagem dentro do governo brasileiro, o software livre pode ajudar a evitar situações como essa?

Não é uma garantia, mas sem dúvida é uma condição necessária. Não é possível ter segurança de informação enquanto qualquer componente do sistema que não possa ser inspecionado tenha acesso à informação: ele pode ser o espião infiltrado. Agora, temos visto que não é só o software que tem aberto espaço para espionagem: desde microprocessadores presentes nos computadores (inclusive telefones) que utilizamos até os componentes das redes de comunicação, quando controlados ou influenciados por terceiros, podem estar cumprindo ordens dos espiões. Por isso a soberania passa por compreender a controlar todos os componentes do sistema; muitos riam quando os chineses falavam em projetar e construir seus próprios computadores. Quem está rindo agora?

Como tem sido a atuação do Free Software Foundation Latin America?

Nossa organização é fisicamente muito dispersa; há apenas um país da região em que temos mais de um membro efetivo (conselheiro). Creio que por isso acabamos agindo de forma mais independente, não muito coordenada, cada um organizando ou participando de eventos em sua própria área geográfica de atuação, promovendo campanhas locais sobre temas relevantes nas comunidades em que atua. De minha parte, posso citar a Campanha contra os Softwares Impostos, cujo foco há alguns anos tem sido no programa fornecido pela Receita Federal para a preparação e transmissão de declarações de imposto de renda de pessoas físicas. Fizemos engenharia reversa desses programas e disponibilizamos versões Livres, enquanto vimos buscando, inclusive através da lei de acesso à informação, a disponibilização ao público desses programas; infelizmente, tem havido resistência por parte do governo federal, o que preocupa, uma vez que pudemos notar, durante a engenharia reversa, que esses programas coletam e transmitem informações dos computadores dos cidadãos que não dizem respeito a informações fiscais!

Confesso que sinto falta de uma atuação mais coordenada e presente de nossa organização, hoje demasiado focada nos poucos indivíduos que a compõem; está em meus planos trabalhar para aumentar a participação das e nas comunidades locais, bem como somar esforços em campanhas de caráter mais geral, internacional, uma linha que outras FSFs têm seguido. Adoraria trocar ideias com quem queira colaborar, tanto de forma presencial durante o Latinoware, quanto depois ou mesmo antes do evento!