Manuela Andreoni, estudante de jornalismo na UFRJ, me entrevistou para uma matéria sobre copyleft, cibercrimes, cultura livre, software livre e temas relacionados. A matéria da qual ela vai pescar trechos da entrevista só sai lá pra fim de junho, mas combinamos de eu publicar a entrevista na íntegra aqui, desde já. Lá vai...

Em 12 de maio de 2009, Manuela Andreoni escreveu:

  1. A Free Software Foundation alerta para o surgimento de diversas licenças em seu site, aconselhando as pessoas a saberem se existe alguma licença que supre suas necessidades antes de criar uma. O que você pensa da diversidade de licenças que existem hoje disponíveis? Desnorteadoras ou inspiradoras? Por quê?

Excesso de licenças cria um problema prático, particularmente para o software. Cada licença oferece um conjunto de permissões, sujeitas a algumas condições. Quando se cria uma obra derivada, como por exemplo um software que utiliza trechos de outros programas, modificando-os ou não, é necessário cumprir com as condições de todas elas. É comum que as condições entrem em conflito, de forma que, ainda que os autores dos programas utilizados não se oponham em princípio à modificação e à distribuição das obras derivadas, a combinação das permissões condicionadas resulta insuficiente para que isso seja permitido.

Infelizmente, as licenças de Software Livre disponíveis hoje não foram criadas com o cuidado para que fossem compatíveis entre si. De fato, lamentavelmente houve um tempo em que alguns grupos introduziram incompatibilidades intencionais, a fim de dividir a comunidade e minar a força da licença mais popular, que tem o copyleft mais forte: a GNU GPL.

  1. Há diferença conceitual entre copyleft para softwares e obras artísticas?

Copyleft é um conceito que surgiu no software: é usar o poder de exclusão do direito autoral não para cercear as liberdades dos outros com relação a uma obra, mas sim para preservar essas liberdades, não concedendo permissão para distribuição de formas que cerceariam as liberdades.

O mesmo conceito pode ser utilizado para outros tipos de obras, mas pode variar o conjunto de liberdades consideradas essenciais. Para obras com finalidades práticas, que eu chamo de obras funcionais, como software, manuais, receitas, livros texto, as 4 liberdades do Software Livre se aplicam perfeitamente: a de acionar a finalidade prática da obra para qualquer propósito, a de estudar como ela desempenha essa finalidade prática e adaptá-la para que o faça de forma diferente, a de copiar, publicar e distribuir cópias da obra, e a de melhorar a obra, publicar e distribuir as melhorias. Há justificativas éticas, morais e sociais para cada uma dessas liberdades, assim como para o conjunto delas, no que diz respeito a software e outras classes de obras com finalidades práticas.

As mesmas ideias não se aplicam a obras destinadas a entretenimento. Estas não geram o mesmo tipo de dependência que as obras com finalidades práticas podem gerar, portanto nem todas as justificativas éticas, morais e sociais se aplicam. De fato, há quem defenda que as únicas liberdades essenciais para obras artísticas para entretenimento sejam as de apreciar e de compartilhar, isto é, distribuir sem fins de lucro. Já outros propõem uma analogia mais completa com as 4 liberdades do Software Livre, mas não se limitando a obras artísticas para entretenimento, estendendo a proposta a todas as obras culturais.

Dado esse embasamento, um copyleft para outros tipos de obras, isto é, um mecanismo de licenciamento que vise a não apenas respeitar, mas também a defender as liberdades essenciais, pode variar de um tipo de obra a outro, de acordo com a variação nas liberdades consideradas essenciais para aquele tipo de obra, mas conceitualmente é a aplicação da mesma técnica jurídica.

  1. O que você pensa do Creative Commons? Qual é a sua importância?

Tenho opiniões divergentes a respeito. De um lado, é bom levantar questões de liberdades e respeito ao próximo para um público mais diverso que usuários de software, estendendo a discussão para outros tipos de obras culturais.

De outro, faltou ao Creative Commons por muito tempo uma fundação ideológica moral, ética e social para justificar as opções de licenciamento, não só do ponto de vista do conjunto de licenças disponíveis, como também do ponto de vista de orientação aos titulares a respeito de como escolher o licenciamento adequado para respeitar as liberdades essenciais em cada tipo de obra. Assim, limitava-se a oferecer um conjunto de opções de flexibilização das restrições estabelecidas pelo direito autoral.

Hoje, com a evolução do embasamento ideológico dos movimentos de Cultura Livre, Creative Commons descontinuou algumas das formas de licenciamento recomendadas anteriormente. Todas as licenças hoje recomendadas respeitam, no mínimo, as liberdades de apreciar e de compartilhar. Isso pode ser suficiente para alguns tipos de obras, mas certamente não para outros, como software. De fato, para software, o CC recomenda licenças que respeitam as 4 liberdades essenciais para software.

Falta ainda (e não só da parte do CC) chegar a algum consenso sobre as liberdades essenciais, para daí criar guias que as levem em conta para orientar autores no licenciamento ético de suas obras.

Chama-me a atenção uma distinção importante entre CC e SL, Software Livre. Embora nos dois haja toda uma gama de licenças disponíveis, no caso do SL todas elas têm como característica mínima respeitar as liberdades essenciais, enquanto no caso do CC, há licenças que não respeitam liberdades que muitos consideram essenciais para determinados tipos de obras, sem que CC deixe de recomendá-las. Isso é um ponto fraco.

Apesar de todos esses pontos, considero CC extremamente positivo, por levar a discussão aonde ela não estava. Meu maior receio era de que se perdesse a distinção entre tipos de obras, e que se acabasse por recomendar indiscriminadamente um licenciamento insuficiente livre para os tipos de obras com que mais me preocupo. Após algum realinhamento ideológico do CC internacional, esse receio já não mais existe, e fico feliz de recomendar o uso de licenças CC adequados a cada tipo de obra.

Mas ainda alerto contra a prática de dizer “sob licença CC”. Há no projeto tantas licenças, com características tão diferentes entre si, e praticamente sem nenhum ponto em comum, que “sob licença CC” não carrega o significado que se poderia esperar do termo “Commons”.

  1. Quando discutimos copyleft, sempre caimos na questão “tudo bem, temos que aumentar o acesso aos bens imateriais, mas como fica o bolso dos autores?” Em relação ao software livre, diz-se que o dinheiro pode vir do suporte e de consultorias. De onde viria a renda dos artistas?

De onde sempre veio: shows, palestras, trabalhos desenvolvidos sob contrato, mecenato, venda direta ao consumidor ou a conjuntos de consumidores, e serviços associados às obras. Não é diferente do software.

O artista tem algo que ninguém mais tem antes da publicação de uma obra: a própria obra. Pode se recusar a entregá-la se não lhe pagarem o preço que pede. Claro que pode acabar não vendendo a obra, se ninguém estiver disposto a pagar o preço estabelecido, ou a formar um grupo suficiente para reunir o preço pedido. Se a sociedade como um todo não considera que a obra valha o que pede o autor, por que deveríamos oferecer-lhe uma maneira de conseguir o que quer?

Há que se lembrar que direito autoral surgiu não para privilegiar o autor, mas a sociedade. Ambos eram ameaçados pelo cartel constituído pela indústria editorial do século XVII/XVIII, quando máquinas de imprensa eram caríssimas, mas não havia empecilho legal para copiar ou publicar. A sociedade viu por bem buscar reduzir o poder desses cartéis, que compravam as obras dos autores por preços baixos, pois eles não tinham a quem mais vendê-las. Por isso conferiu aos autores um controle maior sobre a exploração das obras pelos cartéis. O objetivo era com isso incentivar a publicação de obras, cujos autores muitas vezes deixavam de publicar por não encontrarem condições favoráveis. O objetivo do incentivo à publicação era que, ainda que após um curto período de sacrifício da sociedade, todos passassem a poder se beneficiar da obra para sempre.

Não funcionou. A indústria conseguiu anular o poder conferido aos autores de obras literárias, pois eles ainda não tinham a quem mais vender as obras, e passou a se valer desse poder para coibir o uso pela sociedade dos avanços tecnológicos na imprensa. Depois conseguiu estender o mesmo modelo para obras musicais, audiovisuais, software e todas as demais criações do espírito. Passou a buscar estender o prazo de exclusividade, negando à sociedade o usufruto das obras. Passou a usar medidas tecnológicas para impor exclusividade até mesmo sobre os direitos que a lei excluía do sacrifício. E continua explorando os autores e a sociedade, agora não mais porque detém uma exclusividade quase natural dos meios de reprodução das obras, mas porque cria uma escassez artificial através de medidas jurídicas e técnicas, e tem poder suficiente para subverter a lei fazendo-a funcionar contra os interesses da sociedade, ameaçando o potencial de publicação e acesso democráticos que a tecnologia atual oferece.

  1. O Partido Pirata é hoje o terceiro maior partido da Suécia. Ou seja, a questão do copyleft já inspira movimentos políticos oficiais. O que você pensa disso? Era esse um dos objetivos no momento da criação do novo tipo de licenciamento?

Não tenho conhecimento de que o Partido Pirata defenda o copyleft como se o entende na comunidade do Software Livre, onde surgiu esse conceito. Copyleft não é a anulação do copyright, é o uso do copyright em benefício da sociedade, e não de forma mesquinha. Mas, baseado no copyright (direito autoral), é ainda uma manifestação da vontade do autor, a quem a lei confere esse poder injusto.

A posição desse Partido, segundo a entendo e compartilho, é de que esse poder de exclusão é injusto e anacrônico, e deve ser anulado, ou ao menos severamente limitado, para deixar de servir a poucos em detrimento de quase todos, para servir ao bem comum, como deveria fazer toda lei.

Enquanto ele permanece, podemos criar e manter, através de recursos como copyleft, um corpo de obras culturais dos quais todos que quiserem podem se valer, quase como se não houvesse o direito autoral. Digo “quase” porque a natureza do copyleft é justamente condicionar esse valer ao respeito às liberdades essenciais: obras derivadas de outras obras copyleft, caso divulgadas, devem ser divulgadas sob os mesmos termos, de modo que acrescentem ao corpo de obras livres.

O Movimento Software Livre é um movimento de cunho político, não técnico, e o copyleft é uma inovação jurídica de profundo cunho social. A única surpresa que tenho é que essas ideias maravilhosas demorem tanto para ganhar larga aceitação popular. Certamente contribui para essa demora o controle dos meios de publicação e divulgação pela indústria editorial, antagônica a esses modelos democráticos e sem intermediários que a tornam obsoleta.

  1. Quando inventamos alguma coisa, podemos colocar qualquer licença no que criamos, ou simplesmente colocá-la em domínio público. Posso escolher colocar minha obra em copyright e ter os direitos de sua comercialização até 70 anos depois da minha morte. Na Suécia, o Partido Pirata quer mudar isso, limitando a exploração comercial exclusiva da minha obra para cinco anos. O que você pensa dessa proposta. Acha que ela poderia se aplicar ao Brasil?

Deixa eu primeiro mencionar que “inventar” é um termo que tem a ver com patentes, que nada têm a ver com obras de direito autoral. Patentes têm a ver com uso exclusivo de ideias em aplicações industriais, enquanto direito autoral tem a ver com expressões de ideias (e não às próprias ideias), com a exclusividade em sua modificação, distribuição, publicação e execução pública. São não só conceitos diferentes, como também são reguladas por leis que nada têm em comum entre si. Não convém alimentar a confusão que a indústria editorial semeia empacotando essas duas e outras ideias na contraditória noção de propriedade sobre o imaterial, o não-rival, que pode ser compartilhado por multiplicação, ao invés de por divisão.

À pergunta. Quando, numa conferência sobre direito autoral, Richard Stallman (o pai do Software Livre e do copyleft) propôs a redução do prazo de exclusividade nos usos de obras autorais a 10 anos, um autor de ficção científica relativamente conhecido chamado Cory Doctorov protestou imediatamente: “É um absurdo! Qualquer coisa além de 5 anos é um roubo!”

De fato, as obras são exploradas comercialmente em prazos muito curtos, de um a dois anos, às vezes três, em raríssimos casos mais que isso. Cercear o uso da obra por mais 70 anos além da vida do autor é um contrasenso, ainda mais considerando que o objetivo do direito autoral era justamente trazer mais obras para o domínio público, para que todos as pudessem usar. Mas a indústria editorial, de alguma forma, consegue convencer legisladores a estender o direito autoral por mais 20 anos a cada vez que o primeiro filme com o camundongo Mickey está para cair no domínio público nos EUA. Como isso tornaria Walt Disney retroativamente mais criativo para fazer jus a esse incentivo adicional é uma dúvida que há muito me atormenta.

  1. Qual é a posição da FSF em relação ao caso do PirateBay?

Isso é algo que você teria de perguntar à FSF. Sou ligado a uma organização irmã da FSF original, a FSF América Latina. Mesmo que sua pergunta se referisse à FSFLA, uma organização independente, não tenho autoridade para falar por ela, e não discutimos o assunto a ponto de termos uma posição consolidada.

De todo modo, pelo que conheço da posição ideológica de seus membros e das liberdades que defendemos, em todas as FSFes, não arrisco muito em afirmar que estamos todos em favor do livre compartilhamento.

  1. Richard Stallman não gosta de se associar ao termo "pirata". Como você define a pirataria?

É a invasão de navios para roubar a carga e sequestrar, escravizar ou assassinar a tripulação. Nada parecido com copiar e compartilhar.

  1. O que você pensa das licenças mais permissivas, como a "copie", criada pelo Partido Pirata Brasileiro?
    http://www.partidopirata.org/?q=node/31

Não a conhecia. Adorei o protesto, mas não recomendaria seu uso, por ter sérias dúvidas sobre seu valor jurídico.

Por exemplo, ela não concede explicitamente permissão para distribuição, reprodução e derivação, que, pela lei de direito autoral, exigem permissão explícita do titular. Apenas estabelece condições para permissões que parecem não ser concedidas em lugar algum. Levando em conta que, segundo a lei, licenças de direito autoral devem ser interpretadas de maneira restritiva, temo que talvez a licença não tenha o efeito pretendido, o que é uma pena. Mas não sou advogado, apenas um estudioso do assunto.

  1. A Lei Azeredo é vista pela maioria dos entendidos como um retrocesso. Qual seria a alternativa a ela para a inclusão da internet na legislação brasileira de forma mais atual e realista?

Não entendo a necessidade das alterações propostas no projeto. Dos crimes que o projeto confessa pretender prever, todos já estão previstos na lei vigente. Falsidade ideológica, fraude, estelionato e violação de segredo comercial e de privacidade já são crimes.

Estão chovendo no molhado tentando empurrar pra frente um projeto delineado a partir de um “acordo” assinado por uma dúzia de países ainda sob os ecos do 11 de setembro de 2001, para prever de forma redundante os mesmos crimes, enquanto tentam inventar jeitos de regulamentar o intangível, com consequências daninhas que negam.

O problema maior são os interesses inconfessáveis e a redação plena de problemas. Buscam atender aos interesses (i) dos bancos de empurrar para a sociedade os custos provenientes de transações eletrônicas fraudulentas, mantendo exclusivamente para os bancos as vantagens econômicas das transações sem receber os clientes nas próprias agências, e (ii) da indústria editorial, negando sempre que têm algo a ver com isso, exceto quando a verdade escapa em atos falhos.

Valem-se, para este último, de uma redação ambígua que torna um pedaço de papel um dispositivo de comunicação, sobre o qual se criminalizam a obtenção e a divulgação da informação nele contida, caso ocorra sem a concordância de seu titular. Mesmo que a informação seja pública, mesmo que seja obtida de outra fonte, mesmo que seja de interesse público. É o fim da liberdade de imprensa, a nova censura. Daí chamá-lo de AI-5 digital.

Estabelecem, ainda para promover esses interesses, um clima de terror e de vigilantismo através da violação paulatina da privacidade na Internet, substituindo redes abertas e democráticas por burocráticas redes vigiadas, antagônicas à inclusão digital. Para justificar esses abusos, não deixam de se valer da desculpa do combate à pedofilia, apesar de projeto de lei no mesmo sentido já ter sido aprovado nas duas casas do congresso nacional, um deles na mesma madrugada em que se aprovou o projeto Azeredo no Senado. É uma vergonha sem tamanho.

  1. Você citaria o governo de algum país como tendo lidado melhor com a questão da internet na legislação?

A Internet não é um mundo à parte que exige legislação diferenciada. Os crimes são cometidos por pessoas reais, no mundo real: dinheiro é tomado, pessoas são ofendidas, informação sigilosa vai parar onde não era pra estar, e tudo isso já tem previsão em lei. Ninguém precisou redefinir todo o código penal quando inventaram o telégrafo, o rádio, o telefone ou o celular, para que fraudar, ludibriar, enganar, extorquir ou chantagear continuassem sendo crimes quando praticados através desses meios de comunicação. Por que seria diferente no caso das redes de computador?

Diversos países europeus têm tomado o caminho correto: privilegiar os direitos civis, os direitos humanos, as liberdades e a presunção da inocência, introduzindo leis de proteção à privacidade. Ao invés de condenar o provedor que não vigia seus clientes, condena aquele que coleta e armazena informação que identifique os clientes. Provedor não é polícia.

Já pensou condenar a companhia telefônica porque não grava todas as suas ligações, para o caso de a polícia precisar ouvir as ligações que você fez antes de alguém denunciá-lo por alguma suspeita de crime? É isso que estão querendo fazer no Brasil, só que não pras telefônicas, mas pra provedores de Internet, donos de cybercafés, administradores de sítios, telecentros, redes municipais e abertas.

E não é só porque você não está fazendo nada de errado que qualquer um, mesmo que seja da polícia ou tenha interesses comerciais enquanto provedor, pode sair vasculhando toda a sua vida digital. A privacidade é um direito de cada um, existem leis injustas sendo compradas por interesses contrários à sociedade, e a desobediência civil é um recurso legítimo e necessário para combatê-las.

E, assim como tem gente que se vale de ferramentas de informática para exercer liberdade de expressão e de imprensa para enfrentar ditaduras e escapar das garras de governos injustos, podemos um dia precisar novamente combater um governo autoritário por aqui. Se ele tiver o poder de um Grande Irmão (1984, George Orwell), que uma lei como essas tenta estabelecer, que faremos?

Vale lembrar que essas mesmas ferramentas hoje são usadas por aqui, tanto por quem quer legitimamente defender sua privacidade quanto por criminosos que se escondem da lei. O resultado do estabelecimento de uma lei como essas é que aqueles que têm seus computadores controlados por criminosos à distância, sem seu conhecimento ou consentimento, seriam acusados, transtornados e possivelmente até condenados por crimes que não cometeram, enquanto os verdadeiros criminosos continuariam à solta. Lei penal que pune inocente e deixa o criminoso livre é pior que lei nenhuma.

  1. Quando abrimos qualquer coisa na internet, nosso computador cria umarquivo temporário para ela –-- faz uma cópia. Ou seja, qualquer conteúdo protegido por copyright na internet tem sua licença sistematicamente violada. Pode o copyright sobreviver na internet? O copyleft seria a única resposta para esse problema? É possível conter os avanços contra o copyright?

Primeiro, deixa eu reclamar do termo “protegido”. Copyright não protege informação, ele a aprisiona. Informação é pra ser livre, até porque é um direito humano “procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.

Além do mais, nem copyright nem direito autoral são um poder absoluto sobre as obras. Lembre que não é um direito natural, é uma concessão da sociedade, um sacrifício limitado e temporário. Também são direitos humanos “fruir as artes” e “tomar parte livremente na vida cultural da comunidade”.

Historicamente, direito autoral respeitou esses direitos humanos: nunca foi necessária permissão para apreciar uma obra cultural a que se tenha acesso, ou para compartilhá-la com seus amigos.

Nem bibliotecas nem ninguém precisa de permissões especiais para emprestar cópias de obras a quem queira, nem quem as empresta necessita permissão para poder apreciá-las.

Não é necessária permissão para fazer cópias temporárias de obras para apreciá-las depois; o direito de gravar programas de TV para assistir depois já foi reconhecido até nos EUA.

Não é necessária permissão para assistir a um DVD a que se tenha acesso, embora isso envolva inúmeros processos de decodificação, descompressão, cópia temporária e transferência entre dispositivos. Por que faria diferença se a tela está ao lado ou a quilômetros do computador que faz a leitura da mídia, seja o computador de propósito geral ou programado exclusivamente para executar DVDs? Essas cópias e transformações não são reguladas por direito autoral, são parte do processo de apreciação da obra, que é um direito humano de todos, não um direito exclusivo concedido ao seu autor.

A indústria editorial quer nos fazer crer que não temos esses direitos, a ponto de ir às escolas, com permissão de governos, para ensinar às crianças que compartilhar, que ser solidário com os amigos, é o equivalente moral de invadir navios, saquear sua carga e assassinar sua tripulação. Enquanto isso, nos rouba nossos direitos, nossa cultura, e usa o fruto do roubo para comprar legisladores e nos tornar criminosos.

Escrevi mais sobre esses e outros direitos humanos relacionados a obras culturais no sítio da Fundação Software Livre América Latina: http://fsfla.org/texto/copying-and-sharing-in-self-defense

Copyleft, estando apoiado no copyright, não é uma solução, é apenas um remendo que tenta tornar a vida num mundo contaminado por copyright menos intolerável. A solução ideal talvez seja extinguir o copyright, ou algo próximo disso, mas hoje já temos preocupação suficiente apenas tentando conter seu avanço sobre e contra os interesses da sociedade.


Valeu, Manuela!

Até blogo...